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Ninguém nasce herói
Eric Novello

“Num futuro em que o Brasil é liderado por um fundamentalista religioso, o Escolhido, o simples ato de distribuir livros na rua é visto como rebeldia. Esse foi o jeito que Chuvisco encontrou para resistir e tentar mudar a sua realidade, um pouquinho que seja: ele e os amigos entregam exemplares proibidos pelo governo a quem passa pela praça Roosevelt, no centro de São Paulo, sempre atentos para o caso de algum policial aparecer. Outro perigo que precisam enfrentar enquanto tentam viver sua juventude são as milícias urbanas, como a Guarda Branca: seus integrantes perseguem diversas minorias, incentivados pelo governo. É esse grupo que Chuvisco encontra espancando um garoto nos arredores da rua Augusta. A situação obriga o jovem a agir como um verdadeiro super-herói para tentar ajudá-lo – e esse é só o começo. Aos poucos, Chuvisco percebe que terá de fazer mais do que apenas distribuir livros se quiser mudar seu futuro e o do país.”
(fonte: www.companhiadasletras.com.br)

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Antes de mais nada, vale lembrar que a leitura foi feita em uma prova impressa enviada pela editora. Sendo assim, irei me abstrair de qualquer comentário referente à revisão e à diagramação. Aliás, esses são aspectos que geralmente só lembramos de comentar quando apresentam problemas. O trabalho bem feito acaba passando despercebido.

Ao ficar sabendo que Novello estava escrevendo um livro voltado para o público juvenil com uma temática atual, minha curiosidade ficou atiçada. Afinal, quem leu seus livros anteriores, especialmente Neon azul e Exorcismos, amores e uma dose de blues, conhece a verve de realismo fantástico do autor, misturando entidades irreais (será?) e pessoas comuns num cenário super urbano. O que esperar?

Extrapolando os acontecimentos dos últimos anos aqui no Brasil, a história se passa em um futuro em que o fundamentalismo religioso subiu ao poder, lembrando um pouco Michel Houellebecq, em Submissão. Mas, diferente de Houellebecq, que foca mais nas consequências sócio-política de um evento assim, Novello se concentra nas pessoas. Suas ações e reações, seus pensamentos, seus ideais e objetivos, suas esperanças. E é pelos olhos de Chuvisco, o narrador-protagonista, que acompanhamos tudo.

ninguem-nasce-heroi-provaMuitos autores acham mais fácil narrar em primeira pessoa, já que “basta” se colocar no lugar do narrador e contar a história. Porém, não é assim tão simples, há algumas armadilhas que podem apanhar autores iniciantes como, por exemplo, contar algo que não foi presenciado pelo narrador, sem que se use um intermediário. E Novello não caiu em nenhuma delas. Aliás, colocar Chuvisco como narrador foi uma escolha muito acertada. Pois, já que, a priori, a história é realista, são as catarses criativas de Chuvisco que embutem fantasia na narrativa. Sua imaginação acrescenta camadas à realidade e ele interage com esses elementos fantásticos como se fosse reais. Em alguns momentos o fantasioso é facilmente detectável, como quando ele se enxerga como um super-herói. Mas em outros, o acréscimo ao real é tão sutil – um novo eletrodoméstico na bancada da cozinha, por exemplo – que até mesmo o leitor fica em dúvida. Por conta desses surtos imaginativos, também não é possível confiar 100% naquilo que Chuvisco narra. E esse é mais um elemento que cativa o leitor, já que o limite tênue entre imaginação e realidade faz com que fiquemos o tempo todo com o pé atrás, nos perguntando “será que ele surtou ou é tudo verdade?”.

“Meus anos de terapia me ensinaram três coisas: primeiro, tenho uma tendência a tentar controlar situações que não estão sob meu controle; segundo, eu faria qualquer coisa pelos meus amigos, qualquer coisa mesmo; terceiro, minha relação com a realidade é ligeiramente diferente da mantida pelo restante das pessoas.”
(p.8)

Além da narração de Chuvisco, o autor se utiliza de outros dois recursos narrativos para ajudar o leitor a preencher algumas lacunas tanto sobre o passado do protagonista quanto sobre o que se passa na sua cabeça. Há emails enviados a seu ex-psicanalista, que dão pistas sobre o que são as tais catarses criativas. E há transcrições de vídeos do canal que ele mantém no YouTube, o Tempestade Criativa, que ele usa como um diário e como válvula de escape para suas catarses.

Apesar do background pouco otimista da história, Novello consegue manter a narrativa leve e fluida, mas sem deixar de abordar assuntos polêmicos como política e religião. Talvez alguns leitores sintam falta de descrições mais detalhadas da situação política, do cenário social em que se passa a história. Contudo, como o próprio Novello afirma, a história é “sobre a importância dos laços de amizade e de amor em tempos de ódio”. Como a trama tem correlação com o clima de animosidade vivido no país atualmente, não é muito difícil para o leitor expandir o universo criado pelo autor e inferir quem é – ou poderia ser – o Escolhido e seus defensores. E, mesmo não entrando em detalhes, é possível perceber a influência desse governo fundamentalista no próprio círculo social de Chuvisco e sua turma. Pois, como em qualquer situação, nem todos estão de acordo. Há familiares e conhecidos que, por um motivo ou outro, defendem esse governo – seja por conveniência, seja por ignorância – ou se omitem a respeito.

“– Ela é uma velhinha que acompanha o mundo pela televisão. Vê a economia indo bem, o preço baixo dos importados, a gasolina em conta… — É um assunto delicado para Milena, percebo. — Tem uma hora que a gente cansa de brigar e prefere agir para fazer a balança pesar pro outro lado. É como dizem por aí: casa de ferreiro, espeto de pau.”
(p.161)

Como aconteceu em seus livros anteriores, o texto está coalhado de referências, para deleite dos leitores mais vorazes. Desde a evidente configuração de “super-amigos” que Chuvisco e sua turma assumem em momentos de tensão; passando por um psicanalista/mentor chamado Charles; além da referência a Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, outra distopia em que os livros também são proibidos. Há outras, lógico. Mas a diversão é encontrá-las, certo?

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Leia um trecho.

Entrevista com o autor:


Cristine Tellier
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