Não venho de uma família religiosa. Fortuitamente, meus pais nunca deram muita importância para este quesito. Frequentávamos casamentos e batizados em todo tipo de igrejas e, vez ou outra, sei que tivemos contatos com benzedeiras, centros de umbanda, etc. Mas, acima de tudo, lembro-me de, quando criança, ouvir conversas ocasionais sobre a existência ou não de uma divindade. E, apesar de predominar neles a confiança de que existia de fato um deus, o que realmente ficou arraigado em minha lembrança é que nós podíamos, afinal, questionar.
Minha família manteve seus laços, apesar de tênues, com a religiosidade. Mas eu, particularmente, resignei-me a qualquer crença. Ainda assim, quem me conhece e lê o que escrevo, percebe que, ironicamente, eu falo muito sobre religião. Minha fascinação sobre esse assunto dá-se mais por conta de uma forte paixão pela história e pela psicologia do que pelo mote espiritual. E é impossível olhar para a passagem da humanidade de maneira não associada à religião. Essa engrenagem, sempre infinitamente mais política do que espiritual, pelo bem ou pelo mal (mais pelo mal, do meu ponto de vista), sempre guiou-nos e moldou nossa sociedade desde nossa mais remota existência como espécie.
Por isso, quando vi o título Campos de Sangue, Religião e História da Violência, não pensei duas vezes em lê-lo. O livro de Karen Armstrong é quase tão paradoxal quanto minha paixão pela religião. Explicarei o porquê:
A autora introduz sua narrativa deixando claro o objetivo de demonstrar que, a despeito da eterna ligação da religião com a violência, ela não é necessariamente a grande causadora do mal. Armstrong parte da pré-história, 10.000 A.C., descrevendo como a violência foi importante para o sucesso da humanidade enquanto espécie, mesmo antes de haver uma ideia clara do que eram deuses e religião. Depois analisa as primeiras organizações religiosas, já em 5.000 A.C., e analisa os Deuses sumérios que tinham uma organização social muito semelhante aos homens na terra. E vai até os dias de hoje, onde o conceito de deus é cada vez mais abstrato e surreal.
Não sei você, leitor, mas para mim, analisar e entender os caminhos trilhados e os porquês de certos passos, comportamentos e atitudes da sociedade através das pegadas de nossos ancestrais é algo inebriante, que me deixa em êxtase. E neste quesito o livro é esplêndido. A autora, de maneira muito clara, explica o que aconteceu com os povos, o que os levou a deificar imagens e como esta atitude os afetou e às demais comunidades ao redor. Embasada por uma extensa bibliografia, ela permeia pelas principais culturas: sumérios, celtas, persas, gregos, romanos, chineses, judeus, cristãos e muçulmanos e, desta maneira, elucidando muitas confusões que normalmente fazemos sobre as relações entre todos estes povos.
Contudo, há alguns fatores que acabam por ferir o brilho do livro. Armstrong demonstra uma dificuldade em manter uma linha estruturada do assunto. É compreensível que, pela extrema complexidade e interseção entre as culturas, ela tenha de fazer algumas idas e vindas no tempo, o que, vez ou outra, deixa o leitor meio perdido.
Além disso, a quantidade de conteúdo é esmagadoramente cansativa. A autora não é prolixa e, por incresça que parível, isso talvez tenha sido um defeito em Campos de Sangue. Dada a exorbitância de dados, ela acaba por despejar conteúdo ininterruptamente e, por isso, o leitor tem a sensação não conseguir absorver todas as informações.
E, por fim, sua tese de defesa da religião em si sucumbe diante dos fatos que ela mesma relata. É evidente que, embora ex-freira, mas claramente apegada aos conceitos cristãos, ela procure manter uma aura de neutralidade. Não obstante, a derrota sobre si mesma torna-se impiedosa diante da inexorável crueldade da máquina religiosa durante a jornada da nossa espécie pela história.
Pois a autora descreve toda a violência perpetrada pela religião, tanto física quanto social, porém justifica que, em verdade, não é a essência do movimento em si, mas os homens ligados a ela que a distorcem. Ora… Para mim tal argumento é terrivelmente falho, uma vez que a religião é igualmente produto humano e, portanto, são eles a essência dela. Deste modo, ambas, religião e violência, estarão eternamente interrelacionadas.
Todavia, minha opinião pessoal nesta circunstância é irrelevante. O livro em si, à parte os defeitos que citei, é uma jornada magnífica pela história de nossa espécie e traz um conhecimento que deveria ser obrigatório para todos, sobretudo os religiosos. Conhecer nossa história é de suma importância para que entendamos nosso quadro atual, mas, principalmente, para que não cometamos os mesmos erros.
Vale um vigoroso cappuccino.
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