O Evangelho Segundo Jesus Cristo
José Saramago
Há, como sobre todos os clássicos, um desconforto em falar de Saramago. O peso de seu renome induz a rebuscar a crítica de elogios, deixando esvair-se a função primária do analista literário, que é a de tentar identificar e classificar os blocos usados na construção do texto. Todavia, hesitante e um pouco constrangido, optei por não me abster de tentar.
Seu romance, desta vez, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não desviou da habitual profundidade psicológica com a qual Saramago compõe. Tampouco da audácia típica dele que, ateu, teimou em escrever sobre a vida e morte de Jesus, o Cristo.
É, de fato, um evangelho que, bem como os canônicos, constrói o mito do messias de Nazaré. Desenvolvendo-se, porém, com a típica e forte veia crítica e o brando sarcasmo do velho português.
Em seu habitual estilo, onde ele trança os parágrafos com apostos, desenvolvendo uma escada em descendência à profundidade do drama, explicando detalhes sem, entretanto, ser cansativo, dá ao mito cristão uma verossimilidade que falta aos borbotões nos textos bíblicos. Leva o leitor a um prisma diferente e muito mais honesto sobre os tempos do século I, onde, por exemplo, o machismo pungente imperava na relação marital, realidade a qual, óbvio, nem o santo casal escapava.
Maria, com seus ralos dezesseis anos, recebe a visita do anjo que anuncia sua gravidez e, receosa, pois não sabia como reagiria o marido, anuncia-lhe o fato. É necessário lembrar que na Palestina daquele tempo, por menos que isso apedrejavam-se as mulheres. Quanto mais por uma gravidez anunciada por um sujeito desconhecido e “anjo”, situação na qual a fé não é conveniente ou suficiente para se acreditar.
Daí se desenrola o nascimento e crescimento do jovem Jesus, diferente, porém, em inúmeros pontos, dos textos bíblicos. A começar pelo ponto de vista que aqui se dá pelos olhos do messias, explorando seus pensamentos, anseios e dúvidas. Coisa da qual passam longe os textos dos evangelistas, o que é absolutamente lamentável, visto que, pela hercúlea missão, seria fonte infinita de deleite filosófico saber o que se passava na cabeça do jovem, tanto como homem como quanto humano, Filho do Homem.
É o que Saramago dá de presente para nós. A perspectiva do messias sobre sua própria óptica. A dificuldade em acreditar em si mesmo como mito surreal. E as incongruências do mundo em que o povo autoproclamado “prometido de deus” vivia sob cerrado e cruel domínio romano. E o autor dá a atenção a coisas que os evangelistas originais sequer passam os olhos.
E, obviamente, ele vai além. A despeito dos elementos fantásticos como o anjo e outras fantasias tradicionais dos evangelhos, Saramago, como sempre, mostra a face da humanidade como ela é. Tanto em seu lado macio quanto áspero. Haja vista a cena em que um comandante romano resolve crucificar um homem inocente, entre outros trinta e nove rebeldes, apenas porque, para ele, quarenta é um numero mais simétrico.
Brinda-nos também com aforismos magistrais, encaixados na obra de maneira não destoante e não menos geniais por isso:
“…pois o deserto não é aquilo que vulgarmente se pensa, deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens, ainda que não devamos esquecer que não é raro encontrar desertos e securas mortais em meio de multidões.(…) deserto é dizer, Deixará de o ser quando lá estivermos.”
(Escrevendo agora, relendo esta resenha, dei-me conta do quanto esta obra remete a O Pequeno Príncipe. É um caso a se pensar…)
Como é típico dos romances, a subjetividade impera em todos os recantos do texto. Desde os itens mais óbvios – como certa tigela que permeia na história, representando, quando cheia ou vazia ou quebrada, a alma do nosso protagonista – como outros detalhes que certamente servirão para anos e anos de estudo e especulações acadêmicas.
Há pequenas barrigas, eventualmente, que cansam um pouco o leitor, pois mesmo sendo um gênio, seu formato ininterrupto dá um certo cansaço nalgum momento. Mas, a despeito disso, ainda é um clássico notável e quaisquer defeitos que possa apresentar, são superados pela quantidade de predicados.
Vale, indubitavelmente, um café vienense.
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Adorei o texto! Excelente reflexão sobre O Pequeno Principe não tinha notado isso!