A morte da luz
George R.R. Martin

E aconteceu mais uma vez. Esta era uma resenha que eu não tinha intenção de escrever. Nâo por não querer ou por não ter gostado do livro – muito ao contrário. Mas por falta de tempo mesmo, já que prefiro reservar o tempo disponível para as resenhas dos livros das editoras parceiras. No entanto, um resumão indevidamente auto-intitulado de resenha me incitou a mudar de ideia e escrever uma resenha “comme il faut” (como se deve). Afinal, como já comentei algumas vezes, escrevo a resenha que eu gostaria de ler. E, certamente o que eu quero ler não é apenas o modelo simplista de resumo + opinião, pois isso eu já leio no Goodreads.

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Antes de mais nada, é importante lembrar que este foi o primeiro livro publicado por Martin. Sendo assim, seria uma leviandade analisá-lo – ou mesmo lê-lo – tendo em mente o sucesso da coleção Crônicas de gelo e fogo. Obviamente é difícil, quase impossível, não tecer comparações. Assim como foi difícil gerenciar a expectativa de ler um “livro de sci-fi do Martin”, não é fácil discorrer sobre A morte da luz sem se deixar contaminar com o olhar de quem já leu Game of thrones, mas vou me esforçar para esquivar dessa armadilha.

A história se passa em Worlorn, um planeta errante e moribundo, que no passado havia sido colonizado por 14 raças diferentes. Suas 14 cidades – construídas rapidamente por cada uma das raças quando o planeta passou por perto de uma grande estrela, durante um grandioso Festival – foram aos poucos abandonadas quando Worlorn começou a se afastar de seu sistema solar. Restaram apenas alguns poucos cientistas e estudiosos, entre eles Gwen Delvano – ex-namorada de Dirk t’Larien. Dirk vive no mundo de Braque e segue para Worlorn após receber uma joia sussurrante que, entre Gwen e ele, significava um chamado. Ele chega a Worlorn e encontra Gwen casada com Jaantony Vikary, um kavalariano (uma das 14 etnias que colonizaram o planeta). Com eles, mora Garse Janacek, teyn (uma espécie de irmão de sangue) de Jaantony.

A história, numa visão bem superficial, não passa do clássico conto de fadas do galã resgatando a donzela. Mas o “embrulho”, a ambientação, o universo que Martin cria são o diferencial. É o que torna a narrativa interessante. A capacidade dele em fazer o leitor imergir no universo da história já aparecem aqui. Assim como em Game of thrones, a experiência de leitura é quase sensorial. O leitor tem a impressão de sentir os aromas, os sabores, o vento batendo no rosto, de ouvir os sons descritos pelo narrador. E, mesmo que em alguns momentos as descrições pareçam um pouco mais longas do que o necessário, nem por isso são enfadonhas. O autor se esforça ao máximo para aplicar um dos princípios básico da boa narrativa – “show, don’t tell” (“mostre, não conte). Escorrega um pouco ao dar falas muito extensas a Jaantony, quando ele conta a Dirk sobre o passado dos kavalarianos e histórias do Alto Kavalaan. Há nelas uma riqueza de detalhes que talvez não interesse muito a não-leitores de ficção científica. Mas certamente permitem ao leitor ter uma visão bem precisa do povo de Jaantony, sua cultura e costumes.

E, mesmo sendo ficção científica, Martin encontra uma forma de encaixar no texto uma discussão sobre o uso das palavras, sobre a importância dos nomes e sobre como a palavra utilizada para definir determinada coisa explica muito a respeito do comportamento do povo que a usa:

“Dê um nome para uma coisa e ela, de algum modo, passará a existir. Toda a verdade está nos nomes, e todas as mentiras também, pois nada distorce tanto quanto um nome falso, um nome falso que muda a realidade assim como as aparências.”
(p.42)

Gwen está explicando para Dirk o motivo de tê-lo abandonado. E sua principal motivação está calcada no fato de o nome dela ser Gwen, mas ele insistir em chamá-la de Jenny. Jenny era o que Dirk esperava que ela fosse não quem ela era realmente. Essa discussão remete a O nome da rosa, cujo título tem a ver com essas conceituações etimológicas, o que, por sua vez, remetem também a Shakespeare, em Romeu e Julieta:

“What’s in a name? That which we call a rose
By any other name would smell as sweet.”
(“Que há num simples nome? O que chamamos rosa,
sob uma outra designação teria igual perfume.”)

Um pouco mais adiante, o autor retoma essa temática, sobre o cuidado no uso das palavras e na nomeação das coisas, algo que se torna uma constante durante a narrativa:

“Agora, pode haver muita afeição no jade-e-prata, muito amor, sim. Embora, você sabe, a palavra usada para isso, a palavra-padrão terrestre, não tenha equivalente no antigo kavalariano. Interessante, né? Eles podem amar sem uma palavra para isso, amigo t’Larien?”
(p.52)

Apesar de não utilizar a técnica narrativa que consagrou o autor com Game of thrones, alternando pontos de vista e linhas narrativas, nota-se já neste primeiro livro seu cuidado com a “tecetura” da narrativa, com a complexidade da trama. Mas peca nitidamente em dois fatores que não chegam a comprometer a leitura nem a qualidade do livro mas que devem ser citados: o ritmo da história e a construção dos personagens.

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capa da 1ª edição (1977)
A história se inicia morna e avança num ritmo muito lento. E durante o primeiro terço, o leitor se pergunta várias vezes quando irá acontecer alguma coisa importante, quando surgirá um conflito que efetivamente gerará algum impacto na trama. Além disso, há que se ter paciência com a profusão de nomes de etnias, locais e personagens históricos. Há um providencial glossário no final do livro, mas em certos momentos não há dúvida que o leitor se sente soterrado pela enorme quantidade de informações. Na segunda metade, quando a ação começa a acontecer, percebe-se já o Martin de Game of thrones, prendendo o leitor à poltrona, ficando difícil abandonar a leitura enquanto os conflitos se sucedem.

O núcleo de personagens – Dirk, Gwen, Jaan e Garse – é desbalanceado. Jaan e Garse são mais complexos, bem construídos e desenvolvivos. São personagens repletos de facetas, tridimensionais e, por conta disso, verossímeis. Têm traços de personalidade muito marcantes que os destacam dos demais: a erudição e a ética de Jaan; o sarcasmo e a lealdade de Garse. Ambos têm arcos dramáticos tão bem estruturados que certamente terminam por cativar até o leitor que a princípio os considerava chatos, irritantes, odiosos. Em contrapartida, Dirk e Gwen, os protagonistas, são apáticos. Além de não existir qualquer química entre eles, são em bom português, “sem sal”. Não há como o leitor se identificar com qualquer um deles e, sendo assim, não há como se importar com o destino de ambos. Vale reparar que, diferente de Game of thrones, há apenas uma personagem feminina nesta história, que, infelizmente nem é tão cativante quanto poderia ser.

O desfecho talvez desagrade a alguns, já que a história fica em aberto. Mas eu, particularmente, gostei. E ficou condizente com todo o restante da narrativa, além de coerente com o desenvolvimento do personagem que está na cena final. Já que a narrativa não acompanha o planeta até seu destino final, mantendo-o deconhecido, nada mais natural do que deixar o futuro do personagem em suspenso, quase a critério do leitor e não do autor.

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Cristine Tellier
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