Já havia declarado meu amor a Veríssimo no post sobre Incidente em Antares, obra carregada de sarcasmo e com fortes pinceladas de história. Desta vez, provei um Veríssimo melancólico e filosófico. Contudo, não menos genial. A novela Olhai os Lírios do Campo guia-nos pela vida de Eugênio, um jovem insatisfeito com sua posição social, que almeja despregar-se do estigma da pobreza para ter uma vida menos sôfrega. Em dado ponto, ele realmente consegue. Não, contudo, sem pagar um alto preço por isso.

O livro inicia-se com um paralelo entre o Eugênio contemporâneo e o seu passado, que ele revisita durante o caminho para encontrar Olívia, uma coadjuvante que tem aterradora influência em sua vida e cuja saúde está por um fio. Em cada trecho desta viagem do interior à capital, Eugênio elucida ao leitor a jornada que o levou até ali. Denotando, através da estrutura do tempo cronológico e dos arcos dos capítulos, a estrutura novelesca típica de Veríssimo.

olhai os lirios do campo - erico verissimo

Esta foi a primeira obra que verdadeiramente popularizou o autor. E a palavra “popularizou” é adequada porque o livro atingiu um grande público (em sua maioria mulheres que, naquela época, era a massa consumista das novelas) e não apenas a elite letrada. Todavia, é um Veríssimo. E já é possível identificar a profundidade do escritor que viria a tornar-se um gênio.

A narrativa indireta livre, ou seja, quando o narrador é em terceira pessoa mas descreve com intimidade o que sente a personagem, é magistralmente aplicada pelo autor e aproxima o leitor da angústia de Eugênio. Não fosse assim, possivelmente acharíamos o personagem pedante ou meramente chato, pois este formato de narrativa força a honestidade do sentimento, ao passo que, se narrado em primeira pessoa, levaria o leitor a desconfiar da honestidade da personagem.

A trama é viceral. Sem mesura de dor para Eugênio que atormenta a si mesmo tanto pela culpa das decisões erradas na vida quanto por conhecer o caminho correto e ser incapaz de persegui-lo. Olívia, seu contraponto, atua como a voz de sua consciência e, ao mesmo tempo, como âncora que o prende à realidade.

Veríssimo usa uma semiótica latente, que intensifica a percepção do leitor sobre a ideia que deseja transmitir, algo bem comum em narrativas novelescas, cujo objetivo é deixar que tudo fique claro, sem forçar o leitor a elucubrações ontológicas:

Noite clara e morna. De mãos nos bolsos, começou a passear pela frente da casa, de um lado para o outro. A rua estava deserta. No Céu distante, o brilho das estrelas era apagado e triste. Eugênio parou, ergueu os olhos e ficou olhando o Céu, cheio de uma ânsia sem nome. Lágrimas quentes escorriam-lhe pelo rosto. E então, em pensamento, ele abraçou o pai, beijou-lhe a testa ressequida, acariciou-lhe os cabelos ásperos, amou-o com ternura. No fundo do pátio, Ernesto rachava lenha. O seu vulto mal se distinguia na sombra da noite. Os sons do machado eram secos e ritmados.

O autor odiou a ideia de ser taxado como novelista e revela isso numa entrevista oferecida à ninguém menos que Clarice Lispector. Parece que o velho preconceito gaúcho falava inflamava, tanto a críticos quanto ao autor onde os primeiros apregoavam caráter depreciativo às novelas enquanto o segundo sentia-se ofendido por isso. O que não faz o menor sentido, pois a estrutura da obra – conto, romance ou novela – não incide em mais ou menos qualidade.

Talvez esta latência e impaciência seja reflexo de um escritor iniciante (tinha 33 anos quando o livro foi lançado – praticamente uma criança!), mas demonstra, contudo que ele já dominava técnicas profissionais. Além isso, o livro usa um controle de tempo cronológico, a despeito dos flashbacks. O que é outra grande característica do gênero novela. Um preparo para o glorioso Tempo e o Vento que viria alguns anos depois.

Apesar não ter um apelo à História tão intenso quanto as obras de maior renome dele, Olhai os Lírios do Campo denota uma belíssima visão do gérmen de metrópole que era a cidade de Porto Alegre dos anos 30. Os hábitos bucólicos lutando para sobreviver num mundo cujo modernismo devora com tenacidade.

Aliás, esta é uma das simbologias que ele utiliza para abordar reflexões sobre o contraste entre o simples que é muito e o complexo que é pouco. Eugênio, o protagonista, busca a satisfação da vida, acreditando que o dinheiro e o status social será sua salvação, mas após todo drama para chegar até o topo, como uma montanha-russa, seu espírito decaí ladeira abaixo em frustração de ter aberto mão daquilo que pode vir a ser a sua verdadeira felicidade.

É um drama do dia a dia em que em todos passamos em certos níveis e, possivelmente por isso também, a obra conquistou tantos leitores. É o reflexo de uma angústia humana comum, vista através das formidáveis palavras de um artista genial.

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