Somos todos preconceituosos. Uns mais e outros que não se dão conta do quanto. É normal. Humanos. Temos certa programação incutida no âmago de nossas células que faz de nós boçais com quimeras de racionalidade. E, pressupondo que herrar é umano, é perdoável. Mas a imprudência de reverberar conscientemente um preconceito não. Exemplificar-me-ei: Eu olho desconfiadamente para livros de vampiros crepusculares. Mas eu não saio por aí dizendo que todos são uma bosta. Reservo-me silenciosamente ao meu direito de preconceituá-los.

Semana passada estive num evento com pessoas mais próximas da esfera racionalista do que eu. De prestígio até. Daquele tipo de gente que você tem vontade de pegar no braço e dizer “Ei! Eu te admiro tanto! Seja meu amigo! Goste de mim tanto quanto eu gosto de você!” E, por isso, essas pessoas têm opiniões capazes de se tornarem verdades absolutas para corações ingênuos, quando, às vezes, são apenas opiniões aleijadas.

Alguém falou de Campbell. Joseph Campbell. Autor de um livro chamado O Herói de Mil Faces. Sua obra é conhecida ERRONEAMENTE no meio literário por apregoar um “padrão” nas mitologias e, por consequência, na literatura.
O Herói de Mil Faces
Resumindo: Todo mito, história, lenda, etc. teria a mesma estrutura básica. Onde um herói passa por “fases” que, comparando-se aos mitos, pode-se, segundo Campbell, identificar uma forma única de mito. O que ele chama de monomito.

A verdade é que, analisando as estruturas dos mitos e tomando como base a psicologia junguiana e freudiana, Campbell traça uma tangente entre as lendas mitológicas e a formação da psique. Sugerindo que a primeira seria consequência da segunda. Como se as mitologias desenvolvidas pela humanidade, desde seus primórdios, fossem representações e/ou manifestações fictícias de seus traumas psicológicos. Um forte exemplo utilizado é o mito de Édipo. Segundo Frued:

“O rei Édipo, que assassinou o pai, Laio, e desposou a mãe, Jocasta, nos mostra, tão-somente, a realização dos nossos próprios desejos infantis. Todavia, mais afortunados do que ele, fomos bem-sucedidos, na medida em que não nos tornamos psiconeuróticos, ao desvincular nossos impulsos sexuais das nossas [respectivas] mães e ao esquecer nosso ciúme com relação aos nossos [respectivos] pais”

Considerando que Campbell esteja correto (e para mim sua tese soa bastante convincente), toda mitologia, ao redor do mundo, nascendo da mesma origem, representando metaforicamente os traumas e transições da vida do homem, tende a ter o mesmo formato. Neste contexto, Campbell propõe que podem ser identificadas figuras que personificam aspectos da psique. Ou, como ele diz, os arquétipos. Ex: O herói é o Ego, o eu. O mentor é a entidade aconselhadora (um pai, uma mãe, ou alguém que representa esse papel no mito). A sombra, ou vilão ou problema que tem de ser resolvido e assim por diante. O contexto do mito, a descrição da lenda, o caminho que o herói percorre é denominado pelo autor como a jornada do herói.

Reparem que campbell não fala de criação literária. Ele fala de mitos e psicologia. Não demorou muito, porém, para que se identificassem as características da estrutura proposta por Campbell nas histórias contadas na literatura e no cinema. Uma série de autores elucubraram propostas de formatação das criações literárias tomando-se como referência a estrutura do monomito. Ou seja, supõe-se, seguindo esse raciocínio, que se você tiver a estrutura da jornada e os arquétipos corretos, sua história vai dar certo e ser um sucesso… Só que não.

Antes de mais nada: Eu concordo com a teoria do monomito e com a comparatividade de forma que ela tem com as criações literárias. Afinal, toda trama tem ao menos um personagem central (herói) e todo personagem central tem um problema pra resolver (jornada). Os demais arquétipos ou as fases da jornada estão lá, ainda que não explicitamente. Fora disso, você não tem nada. No máximo, uma bula de remédio. A proposta da jornada do herói não é uma fórmula. É uma constatação. Acha que não? Tente escrever uma história que não seja equiparável em nada com a jornada proposta por Campbell e você vai ver…

Christopher Vogler ficou famoso no meio cinematográfico por sua adaptação da jornada do herói para a estrutura de A Jornada do Escritor roteiros de cinema e, outrossim, também aplicável à prosa. Foi quando se começou a falar de divisão específica de atos, de climaxes e outros detalhes. Se há um verdadeiro culpado pela especulação de uma “fórmula” literária, seria ele. E não Campbell. Mas, ainda assim, eu o inocentaria. A sua proposta nunca foi criar uma “fórmula”, mas indicar formas. Quem lê sua obra, A Jornada do Escritor, percebe que sua abordagem é sugestiva e comparativa. Em nenhum momento ele exime o escritor (de roteiro ou literatura) de sua responsabilidade para com a criatividade, a excelência de escrita e a originalidade de seu texto.

À lá Evelyn Beatrice Hall, “Não concordo com as palavras que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-las”. Eu, não obstante, faço um adendo: “Contudo, tende parcimônia, por favor. Não espalheis a ignomínia.”

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