K-Pax
Gene Brewer

Desde que comecei a aprender inglês, ainda lá na minha adolescência, pude ouvir a música Imagine de John Lennon com outros ouvidos. A letra é, ao mesmo tempo, simples e carregada de significado. É impossível não contemplá-la por alguns minutos e imaginar como seria um mundo onde as pessoas aprendessem a viver harmoniosamente. Talvez estejamos caminhando pra isso, abandonando, bem lentamente, os dogmas e maus hábitos como os que Lennon sonha na canção. Um habitat onde o respeito ao próximo e à natureza tem mais valor do que medíocres e pequenas vantagens individuais. Particularmente, gosto de pensar que sim, que chegaremos num belo ponto de equilíbrio. Só que, às vezes, os entretantos são tão amargos que é muito difícil crer que verei isso durante minha fugaz passagem.

Imagine

Imagine there’s no heaven
It’s easy if you try
No hell below us
Above us only sky

Imagine all the people
Living for today

Imagine there’s no countries
It isn’t hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too

Imagine all the people
Living life in peace

You may say, I’m a dreamer
But I’m not the only one
I hope someday you’ll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A Brotherhood of man

Imagine all the people
Sharing all the world

You may say, I’m a dreamer
But I’m not the only one
I hope someday you’ll join us
And the world will live as one

Imagine

Imagine que não há paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno sob nós
Sobre nós, apenas o céu

Imagine todas as pessoas
Vivendo para o hoje

Imagine que não houvessem países
Não é algo difícil de fazer
Nada para matar ou morrer
E nenhuma religião, também

Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você se juntará a nós
E o mundo será como um

Imagine nenhuma posse
Eu me pergunto se você consegue
Sem a necessidade de ganância ou fome
Uma irmandade dos homens

Imagine todas as pessoas
Partilhando todo o mundo

Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você se juntará a nós
E o mundo será como um

(A tradução foi minha, com certa licença poética)

Mas afinal, não é também um dos papéis da literatura atear combustível em nossa imaginação? Quantas poesias, contos, novelas já não representaram esta fantasia de um mundo equilibrado e justo? E eis que eu, ainda enredado que estava no novelo da ficção científica, depois de terminada a leitura de O Guia do Mochileiro das Galáxias, fui mergulhar em uma obra que traz nas páginas uma ideia muito próxima do mundo preconizado por Lennon: K-Pax, de Gene Brewer.

k-pax-book-movie

Eu já sabia da existência do filme baseado na obra, estrelado por Kevin Space e Jeff Bridges. Queria assisti-lo, depois de ter ouvido ótimas recomendações e, ao dar uma pesquisada, descobri o livro. Rendido pela meu semi transtorno obsessivo compulsivo de ler o livro antes de assistir ao filme, fui primeiro às páginas.

“Às páginas”, vale sublinhar, foi uma figura de linguagem, pois o li no Kindle, brinquedinho pelo qual desenvolvi um grande afeto. Aqueles leitores que demonizam a leitura digital podem se frustrar comigo, mas saibam que os que amam os rolos de pergaminhos também odeiam vocês, malditos leitores do formato codex.

Além disso, não há versão em português. Logo, pela primeira vez na vida li um livro de ficção todo em inglês. Foi uma conquista pessoal. Até então, por causa do meu inglês não ser lá essas coisas, eu havia rejeitado essa empreitada. Deixando um pouco a modéstia de lado, entretanto, e com uma grande ajuda do recurso de dicionário do Kindle, penso que me saí bastante bem.

Vanglórias à parte, o livro conta a história de um psiquiatra, Dr.Gene Brewer – sim, o mesmo nome do autor, mas aparentemente, não há relação direta da vida de um com a de outro – responsável interino por um hospital psiquiátrico que recebe um novo e peculiar paciente, um homem que alega ser de outro planeta: Prot.

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Gene Brewer
A princípio, Dr. Brewer entende tratar-se de um delírio comum, mas conforme as entrevistas com Prot avançam, fica intrigado com a quantidade de detalhes na fantasia relatada pelo paciente, bem como a demonstração de conhecimentos extraordinários.

Prot põe em cheque alguns paradigmas que, para nós, são triviais. Por exemplo: os k-paxianos não têm um governo. São seres que vivem numa harmonia e respeito tão absolutos que não é preciso haver leis e controle. Quando há uma necessidade em específico de fazer alguma coisa (consertar uma estrada, construir um prédio, limpar uma calçada), alguém vai lá e faz. Simples assim. Aposto que você pensou imediatamente: isso jamais funcionaria aqui. E eu concordo plenamente.

Nesse meio tempo, outros pacientes ficam intrigados com o novo integrante e acabam desenvolvendo com ele uma relação que afetará suas vidas. O psiquiatra, de sua parte, vê-se no drama de gerenciar toda essa balbúrdia e ainda cuidar dos próprios problemas familiares e psicológicos que ele mesmo, em primeira pessoa, narra na história.

Não há grande efusividade no estilo do autor, nem, ao meu ver, grande brilho estético. Sua linguagem é contemporânea e simples, o que serve bem dentro da proposta do livro: uma narrativa divertida e simples que agrada pela dinâmica construída entre o suposto alienígena e o doutor. O velho clichê do sábio que se torna aprendiz; onde um personagem estrangeiro aparece para chacoalhar a vida comum do herói estagnado.

Cada capítulo gira ao redor de uma sessão de conversa com Prot onde ele utiliza o contexto da conversa para desenvolver um fluxo de consciência sobre sua própria vida: os traumas pessoais, sua relação atual com a família e a relação com seu trabalho. As intenções do autor são claras: colocar em cheque conceitos que consideramos triviais tanto enquanto sociedade, quanto como indivíduos.

Lembra um pouco o formato de O Silêncio dos Inocentes, onde a policial Clarice Starling desenvolve uma mise en scene semelhante; com propósito bem diferente, claro.

É possível perceber, mesmo para mim que sou um leigo em astrofísica e medicina, que houve um esforço por parte do artista em pesquisa. As explicações são rápidas, mas plausíveis e, principalmente, bem inseridas dentro da histórias sem parecer que o autor estivesse simplesmente regurgitando tecniquês para convencer o leitor.

Em minha opinião, o ápice do livro está nas coisas que Prot conta sobre K-pax, condizente com os conceitos de paraíso ou nirvana de diversas culturas que temos por aqui. A harmonia perfeita é algo com que a humanidade sonha desde sempre. Não é à toa que histórias assim são sempre interessantes.

kpax02

Prot afirma, por exemplo, que conceitos como “trabalho” são confusos para os k-paxianos. Não existe razão lógica, diz ele, para um indivíduo trabalhar em algo que não seja naturalmente um lazer. E isso sim soa para mim como um grande sinal de evolução.

“Eu não sou uma ‘pessoa’. Eu sou um ser. Todos os K-PAXianos são educados. Mas educação não vem das escolas. Educação é embasada no desejo de aprender. Com isso, não se precisa de escolas. Sem isso, todas as escolas do UNIVERSO são inúteis.”

Aliás, eu aposto que, para o autor, o livro é mais uma proposta que meramente uma obra de ficção. Vale lembrar que “k” em inglês se pronuncia “key”, cuja grafia pode ser traduzir como “chave”. E “pax”, do latim significa “paz”. Chave para paz, portanto.

Quem sabe se Lennon também não tenha vindo de lá.

[cotacao coffee=”capuccino”]

PS.: Sobre o filme, um breve comentário, como sempre, os atores principais são impecáveis em suas atuações. Entretanto, a adaptação do roteiro ficou fraca. Parece se esforçar para mostrar todas as linhas narrativas do livro e, por isso, infelizmente, perde o foco. Além disso, muda bastante o drama pessoal do psiquiatra, o que tira um pouco do brilho da relação entre médico e paciente. Não deixa, todavia, de ser um bom filme. Vale para uma sessão da tarde.

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