Carrie, A Estranha
Stephen King

Diante da iminência apavorante de ter um Bolsonaro como presidente, alguns assuntos que têm estado em voga no atual levante da polícia do politicamente correto estão se destacando ainda mais nas rodas de conversas, cinema, mídia, redes sociais e etc: racismo, machismo, xenofobia, escravidão, intolerância religiosa, homofobia, etc. Estas são chagas constantemente infeccionadas e discuti-las nunca é tarefa fácil.

A literatura sempre teve um papel fundamental, tanto pelo lado – que eu entendo como – positivo quanto negativo. Seja cutucando as feridas para que não finjamos que elas não existem, não existiram ou não existirão, seja como, às vezes, desserviço, dando força a sofismas nocivos ou reverberando pragas que de nada agregam em nossa evolução social.

A arte, eu entendo, não deveria prestar contas de ser o que é, contanto que não seja utilizada meramente como ferramenta panfletária ou como arma de ataque.

Falando de livros de ficção, a mensagem precisa ser acessória e, quando possível, subliminar. Quero dizer, o livro tem de exprimir de maneira secundária suas ideias, sem deixar de lado o foco principal da literatura: o entretenimento. Muitos autores receberam epítetos de gênios pela orquestração impecavelmente harmoniosa de discurso político/social com uma história absolutamente apaixonante: George Orwell, Clarice Lispector, Aldous Huxley, Elvira Vigna e, quiçá, todos os romancistas notórios do mundo tenham tido ao menos uma pequena centelha de crítica e até por isso tornaram-se notórios.

E findo este discurso, longo, porém necessário, que chego naquele que o inspirou e que é o alvo desta resenha: Stephen King. Pingou-me nas mãos sua primeira obra: Carrie, A Estranha. Com meus níveis não-obsessivos, mas levemente irritantes de predileção por simetria e ordem, precisava começar por este, visto que fora sua primeira novela publicada, em 1974 – embora eu já tivesse lido O Último Turno, também dele, fingi que tudo bem e comecei novamente, pelo início.

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O livro impressiona. Para um primeiro trabalho, King – naquela época com 27 anos – assumiu um risco e tanto ao compor uma obra de estrutura mista: tanto epistolar, quanto narrativa onisciente. Conta a história de Carrie, menina criada por uma mãe cujo fanatismo religioso beira ao absurdo, que ante o estresse insuflado pelo bullying infindável promovido pelas colegas de escola, começa a manifestar poderes telecinéticos.

Se na resenha de O Último Turno eu comentei que King desprezou as explicações para os fenômenos sobrenaturais, aqui, ele faz um trabalho brilhante, trazendo ao leitor explicações que se tornam plausíveis, através da demonstração de artigos (fictícios, lógico) sobre o tema da telecinesia.

Outro risco assumido fora começar a história com uma linha do tempo variável. Do início, o leitor já sabe que houve uma tragédia e, aos poucos, vai sabendo detalhes de como tudo aconteceu. Começar um livro pelo fim exige um grande domínio da técnica literária e o resultado aqui foi impecável.

Cada personagem é explorado dentro de um estereótipo: Carrie, a pária. Sua mãe, a fanática. Chris Hargensen, a vilã que a persegue, etc. Isso, em geral é nocivo, pois os prende em clichês e os deixa rasos. Mas aqui, não obstante, King os faz soar harmônicos, dando-lhes o devido peso em suas jornadas.

A mensagem contra o bullying não é exatamente subliminar. Está bem escancarada a crítica do autor de como esse tipo de perseguição pode destruir a vida de uma pessoa. Neste caso, contudo, a crítica serve como força motriz da narrativa e não toma um tom professoral.

O estilo que King estava possivelmente calibrando em sua primeira novela, parece bem diferente da obra mais recente que analisei. Nesta última, há um grande despojo, um descompromisso com formalidades e com estilo. Em Carrie, até devido às multi-vozes narrativas, o estilo varia: há o formato jornalístico (muito bem simulado pelo autor), a narração em primeira pessoa (nos trechos em que as personagens relatam sua visão da história) e o narrador onisciente.

Não há grandes efusões estilísticas em termos de figuras de linguagens ou de sublinguagem. Mas também não era necessário. King prende o leitor pela trama e não pelo estilo. Ainda que a estética da obra, levando em conta as características que comentei acima, encantem com contundência.

Não tenho dados para comprovar, mas suponho que em 1974 as obras voltadas para subgênero thrillers não recebessem apostas muito altas das editoras, visto que até hoje existe certo preconceito com esse estilo. King, contudo, inicia sua carreira com uma obra impressionante que, mediante todos as possibilidades de falhas de um iniciante, mostra uma ousadia e talento que já eram sinais de uma carreira do mais absoluto sucesso.

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