Macunaíma
Mário de Andrade

Antes de ler o livro, li e ouvi sobre ele, em lugares diferentes, uma mesma frase: “Macunaíma é o retrato do povo brasileiro”. Bem, isso diz muito e não diz nada. Quase qualquer coisa pode ser um retrato de qualquer coisa. É apenas uma questão de perspectiva. Quando peguei o livro, entretanto, já nas primeiras páginas (metaforicamente falando, porque li no Kindle), é possível ter uma ideia do motivo desse epíteto.

macunaima

O início da narrativa me causou um certo estranhamento. Quando se fala em clássicos, a primeira coisa que vem à mente é aquela linguagem rebuscada de José de Alencar. Mas, para minha surpresa, o texto tem uma espécie de sotaque próprio. O prólogo da história se dá num lugar bucólico, algo como um vilarejo amalgamado a um acampamento indígena. Um meio social que deve ter sido comum no passado, considerando a mistura entre populações de diferentes origens, onde, parece, as pessoas ainda não haviam decidido se eram índios, ou negros, ou imigrantes europeus. Isso é, inegavelmente, a cara do povo brasileiro.

Ainda sobre as múltiplas faces da narrativa, diferente de Érico Veríssimo ou Guimarães Rosa, que denunciavam abertamente suas regionalizações, dá pra reconhecer no texto de Mário de Andrade palavras nordestinas, sulistas, indígenas, africanas e europeias. E essa variedade também é observável em diferentes aspectos no texto. Eis o primeiro parágrafo:

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.”

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Mário de Andrade
photo by: Michelle Rizzo (1869-1929)

Daí observa-se que o personagem “preto retinto” seja, quem sabe, um afrodescendente, cuja mãe é uma índia da tribo tapanhumas e, embora o Rio Uraricoera determine um lugar de referência (fica em Roraima), já temos uma evidência bastante clara que Macunaíma, obra e personagem, têm traços abrasileirados e cabíveis de todo o país.

Neste molde, o autor segue uma linha livre de formalidades, desapegado da gramática, antes valorizando os maneirismos linguísticos. Como se o narrador fosse apenas mais um personagem no meio. Isso deixa o texto ao mesmo tempo interessante e rico de beleza estilística, fazendo o leitor inserir-se no universo que é criado.

É preciso confessar, todavia, que a riqueza em estilo fere, por vezes a imersão na leitura. Não apenas porque as construções de Mário exigem, de vez em quando, uma pausa para a um análise um pouco mais contemplativa, mas também porque o dialeto empregado pelo narrador e personagens às vezes tem palavras que simplesmente são desconhecidas para o leitor medíocre como eu, ou sequer existem no dicionário. Algumas sentenças simplesmente não é possível entender só pelo contexto. Não tomei isso, entretanto, como um demérito. Nenhuma obra de arte tem obrigação de ser compreendida por completo. E, além disso, é possível que Mário tenha tido a intenção de não se deixar entender ou de se deleitar com a dúvida do leitor. Pude adicionar inúmeras palavras à minha coleção de lexemas desconhecidos e muitas outras tive de abandonar no caminho por não encontrar seus significados:

Avito, fescenina, acrisolar, flamífero, ignívomo, nitente, armento, gineceu, deletério, relambório, peta e mais uma infinidade de termos indígenas.

Também é comum ouvir sobre o livro que Macunaíma é o herói sem caráter. E, realmente, a personagem se mantém numa linha tênue entre o anti-herói e o vilão, contrapondo o narrador, insistindo este, desde o início, em chamá-lo de herói. Penso que Mário, ao fazer isso, deixa claro sua visão sobre o indivíduo brasileiro, típico apregoador sobre si mesmo de um véu de honestidade, mas demonstrando, muitas vezes, com suas atitudes, um caráter um tanto quanto duvidoso.

Apesar do humor ácido, porém trivial, embarcado na trajetória e nas ações da personagem, há lá uma abundante dose de mau caratismo, preconceito, desonestidade e, sobretudo, preguiça. Algo que, cá entre nós, não deixa de ser bem brasileiro.

O autor, inclusive, era um grande entusiasta político e crítico fervoroso das iniquidades que, ad aeternum, flagelam nosso país. “Não pretendia, de fato, publicar nenhum poema de Paulicéia desvairada. Até que um dia percebi que as minhas poesias tinham capacidade para irritar a burguesia”, teria dito ele em entrevista ao escritor e biógrafo Francisco de Assis Barbosa, em 1944.

Ele e os demais artistas da época, segundo me informou a Srta. Cristine Tellier, viriam a fundar a primeira fase do modernismo onde “(…) a modinha era a ruptura com o tradicionalismo e o culto ao ‘brasileiro de raiz’, consequentemente, do indígena”.

Embora as referências de lugar no texto sejam de abrangência nacional, o autor não deixou de concentrar a grande maioria delas na cidade de São Paulo. E, não sei você, mas eu, com minha índole saudosista, senti-me regozijado com as passagens citando os lugares onde transito por aqui.

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Passagem subterrânea da Avenida Rangel Pestana em 1939 (fonte: www.saopauloantiga.com.br)

“Afinal chegou o domingo pé-de-cachimbo que era dia do Cruzeiro, feriado novo inventado pros Brasileiros descansarem mais. De manhã teve parada na Mooca, ao meio-dia missa campal no Coração de Jesus, às dezessete corso e batalha de confetes na avenida Rangel Pestana e de-noite, depois da passeata dos deputados e desocupados pela rua Quinze, ia queimar um fogo-de-artifício no Ipiranga. Então pra espairecer Macunaíma foi no parque ver os fogos.”

O gênero romance, por convenção, tem menos compromisso com o arco narrativo em si do que com a expressão artística. Trocando em miúdos, isso quer dizer que – diferente da novela – um romance se preocupa em como contar, com as entrelinhas, com a poesia subversiva que pode se encontrar em meio às brasas da prosa. E Macunaíma é um exemplar icônico deste teorema. Porque a história em si é rasa e se perde em meio à estética intricada e colorida composta pelo escritor.

Por fim, tendo falado das multivozes, multicores e multifaces do caráter de Macunaíma, é perceptível que a alcunha de retrato do povo brasileiro é totalmente verdade. Mas não apenas por isso, afinal, a obra em si é um exercício belíssimo da arte da prosa, mostrando o amor de Mário de Andrade por seu país e sua genialidade em compor uma obra tão complexa e, ao mesmo tempo, tão aderente à nossa simplicidade diária, espremendo poesias da trivialidade, da feira, de uma maloca indígena ou de das máquinas ruidodas da cidade de São Paulo. Mostra que nós brasileiros não somos apenas o país das mediocridades, da corrupção e banheiras de Nutella, mas também das mais pitorescas obras de arte.

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