A morte em Veneza
Thomas Mann

A história é de uma simplicidade extraordinária. Nela, o escritor de meia idade Gustav von Auschenbach viaja a Veneza e conhece Tadzio, um jovem polonês em férias com a família. Apaixona-se platonicamente por ele e morre sem nunca terem trocado uma palavra sequer. Enquanto a linha narrativa é praticamente inexistente, o subtexto é de uma riqueza estarrecedora. Todo parágrafo pode ser lido e interpretado de várias formas.

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Quem já leu Mann sabe, ele é prolixo e usa um vocabulário um tanto rebuscado. Logo na primeira página, lê-se “facúndia”. Não tendo um dicionário à mão, por sorte o contexto ajudou, uma vez que o narrador faz referência a Cícero (para quem não teve a curiosidade de procurar, significa “eloquência”). Logo em seguida, usa “falaz” e “landau”. Por mais que o leitor seja culto e erudito, e talvez até já as tenha ouvido/lido alguma vez, não são termos que usuríamos no dia a dia e, portanto, muitas vezes, o significado fica esquecido. Assim como ao ler Guimarães Rosa, optei por procurar no dicionário apenas aquelas mais esdrúxulas, cujo sentido não conseguisse extrair do texto. Caso contrário, a fluidez da leitura se perderia invariavelmente.

“As observações e as experiências de um indivíduo solitário, calado, são ao mesmo tempo mais vagas e mais intensas do que as de uma pessoa gregária. Seus pensamentos são mais gravez, mais esquisitos, e jamais falta neles um quê de tristeza. Imagens e impressões que facilmente poderiam ser ofuscadas por um olhar, uma risada, uma troca de opiniões, aprofundam-se pelo silêncio, assumindo importância e transformando-se em acontecimentos, aventuras, sensações. A solidão produz a originalidade, a beleza ousada e singular, o poema. Mas também será a fonte de tudo quanto for errado, desproporcionado, absurdo, ilícito.”
(p.33)

O título gera certo estranhamento, já que em geral Veneza está associada a gôndolas, passeios pelos canais, viagens, férias, casais em lua-de-mel. Coisas que são sinônimo de vida. E, de certa forma, o título dá um spoiler, pois a história se inicia com o protagonista em Munique. O leitor já fica sabendo que a trama se deslocará para Veneza em algum momento e que ocorrerá uma morte. Morte que é insinuada, prenunciada, anunciada de inúmeras formas no início do livro. Seja pela figura sinistra que o protagonista encontra no portal do cemitério. Seja pela fala enigmática do gondoleiro que o leva ao Lido:

“- Quanto cobra pela viagem? – perguntou.
E o gondoleiro respondeu, enquanto olhava fixamente por cima dele:
– O senhor pagará.”
(p.31)

Thomas Mann
Thomas Mann
Se, à primeira vista, pela leitura da sinopse, a homossexualidade parece o tema a ser evidenciado, à medida que que a leitura avança, percebe-se que ela se torna um fator secundário. Apesar de a obsessão de Auschenbach por Tadzio beirar a pedofilia – remetendo, mesmo que ligeiramente, a Lolita de Nabokov – não há contato físico. Aliás, como foi dito antes, não há sequer um diálogo entre eles. Todo o sentimento do protagonista é platônico. E, pode-se afirmar que sua atração nem mesmo é pelo jovem em si. A atração não é pela persona, mas sim pelo que ela representa. Auschenbach está claramente atraído pela beleza e pela perfeição do rapaz. Ao persegui-lo pelas vielas de Veneza, está na verdade perseguindo o belo, o perfeito – ávido por absorver e incorporar essas qualidades à sua própria obra. Assim, ao enaltecer o belo, Auschenbach enxerga mais claramente suas falhas e defeitos. E essa dicotomia permeia todo o texto. Razão versus sentimento. Beleza versus podridão (de Veneza).

“E seu desejo era, precisamente, trabalhar na presença de Tadzio, escrever tomando por modelo a figura do menino, acompanhando com o estilo as linhas daquele corpo que se lhe afigurava divino e transportar a sua beleza para o terreno intelectual, assim como a águia outrora levara ao éter o pastor troiano. Jamais lhe parecera mais doce a volúpia da palavra; nunca compreendera tão nitidamente que Eros residia na palavra como nessas horas deleitáveis mas também perigosas, em cujo decorrer ele, sentado à mesa tosca sob o toldo de lona, com os olhos fixos no seu ídolo e os ouvidos atentos à melodia de sua voz, elaborava à imagem da formosura de Tadzio o seu pequeno ensaio, aquela página e meia de prosa sublime, cuja integridade, nobreza e fervorosa vibração íntima pouco depois despertariam a admiração de numerosos leitores.”
(p.55)

Vale reparar o quanto os sentidos são evidenciados no texto, numa sinestesia incessante. As descrições de Mann são tão vívidas que é possível ao leitor, sem muito esforço, ver, ouvir, sentir os aromas:

“O ar estava calmo, fétido. O sol ardia violentamente através das brumas, que davam ao céu uma cor parecida com a da ardósia. Ouvia-se o barulho da água a bater contra a madeira e a pedra. Os gritos do gondoleiro, mescla de advertência e de saudação, recebiamem meio ao silêncio do labirinto, respostas baseadas em estranhas combinações. De jardinzinhos situados no alto, sobre muros em ruína, pendiam cachos de flores brancas e purpúreas, que exalavam um perfume de mêndoa. Janelas árabes espelhavam-se nos turvos canais. Os degraus de mármore de uma igreja desciam até a superfície. Um mendigo, de cócoras, estendia o chapéu, lamentando-se da sua miséria e mostrando o branco dos olhos, como se estivesse cego.”
(p.64)

Se, comparado a outras obras de Mann – A montanha mágica ou Os BuddenbrookMorte em Veneza parce um livro pequeno, pode ser equiparado a elas pela densidade da narrativa. As divagações e as várias “camadas” de texto pedem por uma segunda, terceira ou quarta leitura.

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Cristine Tellier
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