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A Guerra não Tem Rosto de Mulher
Svetlana Aleksiévitch

Parafraseando o autor Joachim Fest, um dos renomados biógrafos de Adolf Hitler: não se passa uma semana sem que saia alguma nota num jornal, revista, tevê ou internet citando a Segunda Guerra Mundial. As razões para isso são múltiplas, bem como os prismas pelos quais se observa o fenômeno. Para tentar resumir, eu diria que o trauma da barbárie humana foi tão intenso, tão grande e tão vergonhoso que não conseguimos, não queremos e não podemos esquecê-la. E, nem mesmo, entender exatamente o que aconteceu.

Os pontos de vista variam infinitamente: há quem observe com as lentes da psicologia, do ocultismo, da religião… Mas, uma coisa é fato: são raríssimos, senão praticamente nulos, os documentários, artigos e citações que analisem a Segunda Guerra do ponto de vista das mulheres. Pelo menos até que Svetlana Aleksiévitch tivesse escrito sua obra A guerra não tem rosto de mulher.

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No início, lembrei-me, vagamente, de Truman Capote, com seu A Sangue Frio. Não apenas pela tensão de saber que toda crueldade ali relatada é real, mas também pela carga dramática incutida pelo autor. Porém, a comparação parece agora distante. O que Svetlana faz, diferente de Capote, não é romantizar a história, mas transcrever com emoções caudalosas os relatos de mulheres que lutaram na guerra e sobreviveram.

“Mulheres lutaram na guerra?”, perguntar-se-iam alguns mais néscios. Sim. E, embora isso seja muito vagamente citado em todos os relatos formais e informais da guerra, a verdade é que nos últimos meses de conflito, ao menos do lado russo do furdunço, elas eram quase a maioria em campo. E foram imprescindíveis para a vitória.

Não é uma obra feminista. É uma obra realista. Não tem apologias, tem fatos. O que já faz dela feminista o bastante. Diria que é uma bofetada muito bem dada em nossa cara. Explicitando o quanto nossa sociedade é estupidamente machista: mulheres – crianças, na verdade, entre quinze e vinte cinco anos – chamadas para lutar numa batalha cruel, com regras brutais, definidas por seus ditadores, sem ganhar sequer uma farda adequada, tendo de abandonar suas famílias, filhos e mães, como fuzileiras, paraquedistas, infantaria e enfermeiras, em nome de uma pátria que, findo o conflito, não as condecorou com os mesmos méritos e, em muitíssimos casos, as taxou como putas do front, como mães negligentes, como mulheres que não serviam para casar.

“Como a pátria nos recebeu? Não consigo contar sem soluços… Quarenta anos se passaram, e até hoje meu rosto queima. Os homens se calavam, mas as mulheres… Elas gritavam para nós: ‘Sabemos o que vocês faziam lá! Com as b… Jovens seduziam nossos homens. P… do front. Cadelas militares…’. Nos ofendiam de várias maneiras… O vocabulário russo é rico…”

Carl Sagan dizia que a realidade é muito mais surpreendente que a ficção. É muito mais violenta e cruel também. Sabemos sumariamente o que houve lá, naquela batalha. Sabemos dos campos de concentração, das câmaras de gás. Mas poucos falam do filhos arrancados do seio da mãe, poucos falam dos estupros e poucos falam do que foi voltar para sua terra e não encontrar nada além de terra coberta de cinzas. Tudo que soubemos até então foi contado por homens que tendem sempre a ter uma visão mais onírica e enaltecedora de grandes feitos. Mas a autora trouxe-nos as entrelinhas, as minúcias que são capazes de embrulhar nossos estômagos de tristeza e revolta. Não poucas vezes fiquei engasgado ao ler trechos terríveis.

“Ao lado de um dos barracões estava uma mulher dando de mamar a um bebê. E, sabe… Os cachorros, os seguranças, estavam todos estupefatos, de pé, sem tocá-la. O comandante viu essa cena… Deu um salto. Tirou a criança dos braços da mãe… Então, sabe, tinha uma bica, uma bica de água, e ele ficou batendo a criança contra o ferro. O cérebro começou a escorrer…”

Apesar do latente sentimentalismo eslavo em seu estilo, algo que sempre me agrada profundamente, a autora escreve menos preocupada com o formalismo, do qual os russos clássicos jamais abririam mão. Longe de ser um demérito, isso aproxima mais o leitor da narrativa. Não dá para saber o quanto ela incidiu nos relatos, incutindo seu estilo, se os alterou para ficarem mais dramáticos ou se foi deliberadamente fiel. Contudo, mesmo que ela tenha inventado tudo, o mérito permanece, pois é uma narrativa absolutamente visceral, onde, com palavras coloquiais, ela cose uma obra indelével.

Como uma linha narrativa alterada, ela comenta a dificuldade de produzir um material que fale da realidade e não daquilo que as pessoas querem que seja a realidade. O caminho para a “Vitória” foi também uma grande derrota, pois a crueldade foi paga com mais crueldade. E isso é muito difícil de se reconhecer, num país que até pouco tempo atrás era uma hegemonia militar.

Uma vez mais concordo com a decisão do prêmio Nobel de literatura. Svetlana deu voz às mulheres que até então afogavam-se em seus silêncios. E, por mais que jamais consigamos nos redimir de nossos erros imbecis para com as mulheres, dá uma ligeira satisfação de uma passo vencido. Literatura também é isso. Para que outra coisa seria a arte, senão para libertarmo-nos?

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PS.: Para aqueles que acham que este pesadelo faz parte de um passado remoto, que não precisamos lembrá-lo constantemente, gostaria de comentar que na estação Pedro II do metrô, aqui em São Paulo, no dia do Natal, o vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas foi espancado até a morte por dois covardes, quando tentou impedir que eles agredissem um transexual. Assusta não apenas a violência dos dois animais que atacaram o ambulante, mas a indiferença das pessoas ao redor. É possível ver na filmagem que a estação não estava vazia e que o ambulante foi atacado a pouco mais de 1m da bilheteria. Contudo, nem o funcionário do metrô nem as pessoas presentes tiveram qualquer atitude (assim como alemães vivendo próximos a campos de concentração fechavam os olhos para o que estava acontecendo). “A história da guerra foi substituída pela história da Vitória”, ironiza Svetlana. Que vitória? Pergunto eu…

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