jornada do heroi

Comentei outrora sobre o livro O herói de mil faces, de Joseph Campbell. Trata-se de um estudo que aponta um padrão estrutural em todo mito ou lenda da cultura humana possibilitando sempre identificar os mesmos arquétipos de personagens (herói, mentor, vilão, etc).

Baseado nisso, o roteirista Christopher Vogler escreveu o teorema “A jornada do herói”, utilizando a forma do mito proposto por Campbell no contexto da elaboração do roteiro de cinema, indicando uma estrutura cognata às lendas e mitos, concluindo que toda história a ser contada enquadra-se neste formato.

jornada do heroi

Este tipo de padrão já havia sido estudado em diversas oportunidades, como o fez Vladmir Propp, numa esperança de esquematizar o gênero ‘conto’. Sua análise aproxima-se muito do que Campbell propôs e, caso ele tivesse expandido seus horizontes para o universo mitológico humano, não apenas no núcleo do conto, teria logrado êxito muito maior.

Todo este padrão foi se moldando, subdividindo, ganhando variações de silhueta. Hoje podemos identificar um sem fim de filamentos, cada qual com seu mote específico.

Recentemente, tenho observado este fenômeno dentro do que o mercado chama de chic-lit, ou no coloquial, literatura para meninas. Apelidei este de “padrão crepúsculo”, epíteto que dispensa explicações. Visualize o seguinte:

  1. A protagonista é sempre uma adolescente ou mulher jovem e bonita; inteligente de forma peculiar ou com um dom especial.
  2. Por sua beleza e inteligência ou dom especial, a moça sempre é uma espécie de pária em seu meio. Ou é a menina perseguida na escola, ou pela família, ou órfã, ou que está passando por um processo de luto ou perda – nota-se que inclusive as(os) amigas(os), quando existem na narrativa, são explicitamente inferiores em inteligência e, quase sempre, em beleza, além de comumente superficiais, deixando a intelectualidade da protagonista ainda mais evidente.
  3. Ela se envolve ou já está envolvida num problema. Eis o drama ou ponto de conflito. Quando se trata de uma história de realismo fantástico, o problema é o risco de morte ou aprisionamento. Quando é apenas uma novela do estilo romântico, o problema é uma relação amorosa proibida ou o processo de luto pelo fim da relação anterior.
  4. Aparecerá um salvador misterioso. Sempre — SEMPRE — um homem fisicamente atraente, dentro do estereótipo padrão de beleza: “tórax definido e braços volumosos”. Não raro ele entra na vida da protagonista de modo abrupto, por um acidente do acaso.
    crepusculo
  5. Ele será sempre admirado por todos à sua volta. Despertará a paixão de todas as outras mulheres da narrativa. Porém só se interessará por ela. Mesmo que esteja num outro relacionamento, este perderá toda a importância ou se tornará ilegítimo.
  6. Ele tem um mistério a esconder que causará um conflito secundário em dado momento da história. Pode estar diretamente ligado ao conflito principal ou não, mas invariavelmente servirá para estremecer a relação da protagonista com seu salvador.
  7. O vilão, quando há, tem pouca relevância. Visto que o núcleo do conflito é a relação do casal.
  8. Haverá uma entidade de sabedoria (um pai, uma mãe, uma avó, uma amiga, uma criatura mágica – fada madrinha) que servirá para ajudar a resolver os conflitos entre a protagonista e seu salvador.
  9. A heroína invariavelmente ficará com o salvador no final. Mesmo que este morra, terá marcado a protagonista de forma tão indelével que qualquer relação que ela venha a ter depois será apenas de caráter perfunctório.

Notem, por favor, que isso não é uma crítica ao gênero ou à estrutura. É apenas uma identificação. Cabe dizer, entretanto, que quanto mais evidente a estrutura está na história, mais inverossímil e fraco é o enredo da narrativa.

O motivo de identificar estas formas nas narrativas é justamente para que seja possível recriá-la, sem, todavia, transparecer que é “mais do mesmo”.

O próprio Vogler sugere que, em caráter de exercício, o escritor utilize fichas para escrever cada fase da narrativa e depois embaralhe-as, desenvolvendo os encaixes. O que é apenas uma das formas modelar a narrativa de forma não óbvia.

A função do escritor é ludibriar o leitor para imergi-lo na ficção, fazê-lo comprar a ideia e se divertir ao se surpreender com o que lê. Quando o esqueleto da obra se destaca e torna fácil enquadrá-la num padrão, sua leitura será monótona e previsível.

a jornada da heroina

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4 Replies to “A Jornada da Heroína”

  1. Incrível que hoje mesmo escrevi sobre o Paradigma das histórias, apontando justamente sobre essa ‘mistura’ que Vogler Sugere. Vou, aliás, citá-los no meu post, para agregar na leitura do tema! 😀

    1. Olá Gisela! Obrigado por aparecer e tomar um cafezinho conosco. Pois é… Parece que há, de fato, um paradigma em toda narrativa, uma certa estrutura que todos mantemos ao contar uma história. Segundo Campbell, isso se justifica na forma como nossa psique é formada, seguindo – de maneira inconsciente – este mesmíssimo ciclo. O papel do escritor, entretanto, é não deixar isto transparecer. O que é, infelizmente, raro de encontrar.
      Beijo.
      D.

  2. os autores sabem que quando a menina terminar de ler Crepúsculo ou A culpa é das estrelas, vai querer ler algo com a mesma estrutura, por isso tem dado um certo a fórmula. talvez num futuro próximo comecem a inovar e ousar, no momento vão aproveitar essa moda.

    1. Olá Cristiane! Obrigado pela visita. Em verdade, penso que isso vai um pouco além do que meramente modismo. Segundo o estudo de Campbell, a jornada do herói é um reflexo da forma de como nós, seres humanos, formamos nossa psique. Se partirmos deste prisma, vemos nestes livros exatamente a tal jornada, porém com paradigmas do mundo feminino/adolescente, regado a velociade do consumo do nosso mundo internético. Em outras palavras… Não acho que vai sumir tão cedo!

      Beijos.
      D.

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