Mesmo que em algum dia eu deixe a área de TI, jamais deixarei de ser um programador. E, entre outras características, isto faz fervilhar em meu sangue o desejo de encontrar padrões e estruturas em tudo.

O fato de não existir definições de fórmulas para a construção de um conteúdo literário não significa que a formulação seja impossível. Talvez a questão seja apenas abrangente demais e tão variante que torna inviável juntar tudo numa única formuleta. Algo comparável à Teoria Física da Grande Unificação.

Ao ler A Paixão Segundo G.H.pude identificar claramente alguns padrões de estrutura literária. Isso me veio como uma analogia simples, até infantil. Considere o seguinte: Todo trabalho literário de prosa (e isso exclui poesia, música, livros técnicos, etc.) tem, imperativamente, uma linha narrativa.

Essa linha narrativa é a história mais simplificada, o denominador comum do texto. Há um início e, obrigatoriamente, um fim. Isto é invariável, independente de final feliz ou triste. Exemplo: “Um homem caiu em um buraco.”

É claro, todavia, que um escritor jamais seria considerado como um bom escritor se mantivesse seu trabalho dentro desta simplicidade escrachada. A solução, então, é adicionar adornos textuais através de contexto situacional e algum sentimento.

Bem a grosso modo, poderíamos classificar os estilos dos autores baseados na quantidade de contexto situacional e sentimental de suas histórias. Apliquemos paliativamente a classificação de denotativos para os primeiros e conotativos para os segundos.

Nota: Nada tem a ver com ser bom ou ruim. Vai do gosto do leitor.

Falando especificamente de sentimentos: Não se pode descrevê-los senão pelo uso da metáfora. A menos que se tome a terminologia científica citando hormônios e substâncias, a ideia do sentimento em si é subjetivo, abstrato e, finalmente, metafórico. Permitam-me expôr um trecho pinçado do livro Criação Literária de Massaud Moisés sobre isso:

(…) A literatura caracteriza-se pelo emprego sistemático da metáfora. Sendo conotativa por excelência, desenvolve-se como uma constelação de símbolos carregados de enorme taxa de subjetividade.

Resumindo: A literatura é um tipo de conhecimento expresso por meio de palavras polivalentes.

De um prisma diferente, considerando que a arte – e assim a literatura – trabalha através da subjetividade e da polivalência das palavras, fazendo-o pelo emprego das metáforas, a significação ou o sentido do que está sendo representado é algo intrínseco ao indivíduo. Entendida como o universo interior onde estão armazenados e transfigurados os produtos da percepção sensível e emotiva da realidade ambiente, a ficção aqui entra em cena.

Agora, depois desta enrolação necessária, chegamos ao ponto em que eu queria: Pense num varal. Aquela corda de pendurar roupas. Esta é a nossa linha narrativa. Ela pode ser comprida ou curta. Estar esticadinha ou curvada. É, entretanto, invariável.

As variações de formato do varal são as variações denotativas. As roupas penduradas são os sentimentos, as cores, ou seja, as variações conotativas. E sobre isso que quero falar:

Assim como existem as metáforas rasas (exemplo: “Estou morrendo de fome”), pode haver as profundas (exemplo: “Sinto que a fome se agarra em mim como um câncer que consome as células do meu corpo, fazendo-as secar com uma agonia infinita”). O VaralPense que, no varal, as rasas são cuequinhas e calcinhas de criança penduradas. E as profundas são grandes edredons e sobretudos, tudo muito colorido ali pendurado.

Pronto. Agora vamos falar de Clarice Lispector. Ela é um varal pequeno. Uma cordinha esticadinha e curta. Onde ela pendura um amontoado sem fim e multicolorido de todas as roupas que se pode ter. Edredons, calcinhas, sobretudos, cobertores, camisas, camisetas, sapatos, vestidos, vestidos, vestidos… Numa efusão de cores densas e fortes.

Em A Paixão Segundo G.H. a história (o varal) é assim: A empregada da personagem pediu demissão. Ela resolveu que ia limpar o quarto da dita cuja. Entrou lá, se surpreendeu com a arrumação. Ao abrir o guarda-roupa, porém, viu uma barata. Levou um cagaço e, depois de matar o bicho, entra num momento de reflexão sobre sua existência.

E, em termos de linha narrativa, ela não diz mais nada em suas quase duzentas páginas. O restante é preenchido com uma quantidade absurda de metáforas de todas as formas. Uma carga sentimental densa e pesada.

Não estou reclamando. Clarice é a melhor autora para metáforas que já li. Simplesmente indefectível. A Paixão Segundo G.H.Ninguém descreve um sentimento como ela. Suas conotações são de uma exatidão milimétrica à sensação da personagem. É, em minha opinião, um pouco exagerada. Mergulha em reflexões e transcendências profundas e se repete bastante nelas (o que não vejo como defeito, mas como estilo ou tentativa de dar ênfase). Sempre, no entanto, volta ao fio da meada.

Percebe-se uma grande evolução técnica ao comparar este trabalho com seu primeiro livro. Perto de Um Coração Selvagem me pareceu ainda muito mais denso. A linha narrativa praticamente se perde de vista. Tanto que eu lembro muito pouco da história em si. Era uma imersão completa na consciência de uma jovem garota apaixonada por um professor.

Eu, como autor e “estruturador de romances”, diria que a linha narrativa precisa estar sempre visível. Uma corda firme em que o leitor possa se segurar enquanto mergulha na psique (às vezes doentia) do personagem. Mas… No final das contas, fico feliz por Clarice nunca ter pedido minha opinião.

mm
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4 Replies to “Clarice Lispector e Seu Varal de Roupas”

  1. Gostei muito! Uma metáfora e tanto! Bela "formuleta"! Tb tenho vontade de encontrar padrões e estruturas em tudo. Tem um filme sobre um matemático esquizofrênico que buscava (e encontrou) padrões onde ninguém via.

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