A menina submersa: Memórias
Caitlín R. Kiernan
tradução: Ana Resende, Carolina Caires Coelho

“O trabalho cuidadoso de Caitlín R. Kiernan é nos guiar pela mente de sua personagem India Morgan Phelps, ou Imp, uma menina que tem nos livros os grandes companheiros na luta contra seu histórico genético esquizofrênico e paranoico. Filha e neta de mulheres que buscaram o suicídio como única alternativa, Imp começa a escrever um livro de memórias para tentar reconstruir seus pensamentos e lutar contra o que seria “a maldição da família Phelps”, além de buscar suas lembranças sobre a inusitada Eva Canning, sua relação com a namorada e consigo mesma, que evoca em muitos momentos a atmosfera de filmes como Azul é a Cor mais Quente (Palma de Ouro em Cannes, 2013) e Almas Gêmeas (1994), de Peter Jackson.”
(fonte: goodreads.com)

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“‘Vou escrever uma história de fantasmas agora’, ela datilografou.
‘Uma história de fantasmas com uma sereia e um logo’, datilografou mais uma vez.
Eu também datilografei.”
(p.13)

Antes de mais nada, é bom avisar que este livro não é para ser lido às pressas. Não, a linguagem não é difícil. É coloquial. Não há construções rebuscadas. O texto é bem fluido. Então, por quê? Porque a história é narrada, em primeira pessoa, por uma personagem esquizofrênica. A narradora/protagonista está escrevendo um livro contando sua própria história. Metalinguagem. Um livro sobre alguém escrevendo um livro. Além disso, Imp conversa consigo mesma e, quebrando a quarta parede, conversa também com o leitor. Há uma variação sutil em cada uma das vozes e leva algumas dezenas de páginas para o leitor se habituar e perceber cada uma delas. Talvez por isso, a leitura pareça morosa e pouco fluida no início do livro. Mas assim que entendemos como a narrativa funciona, um portal se abre e aproveitamos bem mais a “viagem”.

Se as lembranças de uma pessoa “normal” não costumam ser super organizadas, imagine as de uma pessoa com um transtorno psicótico. A memória de Imp é errática. E suas lembranças, por vezes incômodas e dolorosas, eventualmente são interrompidas, e ela muda de assunto (quase) sem mais nem menos. Escreve o que lembra, o que consegue contar e, quando não consegue, fica fazendo rodeios até “se convencer” a escrever. As histórias não seguem uma ordem cronológica. Imp alterna entre o presente e o passado. Esse vai-e-vem, por vezes, embaralha as linhas temporais e o leitor demora um pouco a se situar. Ou seja, a história vira uma colcha de retalhos. O que requer atenção e dedicação do leitor. Motivo que fez muitos não apreciarem a leitura e, em casos extremos, desistirem do livro. Pessoalmente, esse formato foi o que me deliciou durante a leitura.

“Isso é uma assombração dentro de uma assombração, o conselho da minha mãe suicida ainda chegando a mim depois de 13 anos.
Gente morta, ideias mortas e supostamente mortos nunca estão mortos de verdade e eles moldam cada momento de nossas vidas. Nós os ignoramos e isso os torna poderosos.”
(p.116)

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Diferente de muitas outras obras – Garota exemplar, por exemplo – em que a narradora não é confiável, mas o leitor descobre isso passadas muitas páginas do livro, neste desde o início sabemos que não se pode confiar no que ela conta. O lado “fantasia” da história se deve totalmente à condição da protagonista. A veracidade das suas memórias é, no mínimo, questionável. Não que Imp escreva de má-fé. Longe disso. Mas é impossível não se questionar se o que ela escreve aconteceu realmente, se foi algo que ela imaginou ou se é uma memória inventada. O leitor fica confinado a acompanhar a trama através dos olhos da protagonista, já que não há outro ponto de vista disponível. E esse mesmo leitor sente-se compelido a completar as lacunas e tentar entender o que significam os eventos fantasiosos narrados.
 

“Estou tentando não mentir.
Estou mentindo.
Eu lhe digo isso, India Morgan Phelps, filha de Rosemary Anne e neta de Caroline, você nem imagina os próprios motivos. Você ofusca, nega e torce a falsidade (consciente ou inconscientemente) e não sabe dizer o porquê. É loucura, e isso tudo é loucura. Não, é pior que isso. Estou começando a perder o fio da minha história de fantasmas.Não estou mais nem certa de que é uma história de fantasmas e, se não for, não sei mais o que poderia ser. Ou como proceder.”
(p.226)

O livro está repleto de personagens femininas. Além da narradora, sua mãe e sua avó, há Eva Canning, Abalyn – a namorada -, a médica e a amiga do emprego. Homens, apenas dois. O pai de Imp, presente apenas em suas memórias – quando ela conta que ficava listando várias formas – horríveis, aliás – de ele morrer. E um pintor, que é apenas mencionado. Vale destacar a maneira como a autora aborda a representatividade. India é lésbica e namora uma mulher trans e bi. A questão de gênero é tratada de forma natural – como deve ser, aliás. Nada é estereotipado. A sexualidade delas não as define. Seu relacionamento é relevante para a história de Imp, não é apenas pano de fundo

Difícil falar mais, sem dar spoilers. Ganhadora do Bram Stoker Award – premia os melhores livros de fantasia e terror – em 2012, é uma obra que pode agradar não apenas os fâs desses gêneros, mas também leitores que curtem thrillers psicológicos e narrativas menos convencionais.

Curiosidade:
O apelido da protagonista, Imp, como é fácil de perceber, é um acrônimo de seu nome. Mas, em inglês, Imp significa “duende” ou “diabrete” – detalhe que se perdeu na tradução, infelizmente.

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Cristine Tellier
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