Os Vestígios do Dia
Kazuo Ishiguro

Às vezes, paro e penso sobre o que fiz da minha vida. E creio que todo mundo, sobretudo aqueles que já passaram dos trinta, fazem essa reflexão uma vez ou outra. Volto a ver a mim mesmo com os olhos de quando era criança, espiando pelo caleidoscópio onde vislumbrava meu futuro e percebo que pouco condiz com o que eu esperava. Às vezes o resultado dessa reflexão pode ser um pouco melancólico, pois o colorido da vida que eu esperava para meu hoje parece um pouco opaco. Mas, isso à parte, sinto-me contente por terem surgido caminhos diferentes do que o plano hermético que havia sido traçado. Posto que, se eu o tivesse seguido à risca, tomado cada cuidado e cada precaução para me ater ao mapa, talvez eu não tivesse vivido experiências que hoje exponho com orgulho no Hall dos Grandes Feitos da minha memória.

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O livro Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro, passou-me, desde seu início, a impressão de ser um grande fluxo de consciência, exatamente neste sentido. Stevens, um mordomo inglês, profissão ícone da alta nobreza e aristocracia naquela cultura até pouco tempo atrás, rememora sua vida, reavaliando o caminho trilhado.

À primeira vista, dir-se-ia tratar-se de uma novela romântica, açucarada, fazendo-me questionar o que teria levado Ishiguro a ganhar um Nobel de Literatura. Conforme a narrativa avança, todavia, é possível entender um pouco melhor a relevância do trabalho.

O texto em primeira pessoa tem uma linguagem prolixa e cuidadosa, mas fluida – o que, pra mim, que escrevo de maneira rebuscada, inclusive, é um deleite. Reflete de maneira óbvia o perfil altamente metódico e meticuloso do protagonista. A tal ponto obsessivo que, sobretudo no tocante ao seu trabalho e ao seu modo serviente, chega a irritar o leitor. Stevens conta sobre certa viagem de férias que seu patrão lhe sugerira com veemência. Viagem ele relutou empreender até que encontrar para si mesmo uma justificativa plausível: aproveitaria o ensejo para resolver assuntos profissionais.

Nesse ínterim, vai relatando ao leitor seus motivos, suas lembranças e todas as passagens que culminaram na decisão de cumprir aquela “missão” da viagem. E estas digressões começam a revelar um cenário de fundo mais complexo. A aparente história vã de mordomo é emoldurada num prefácio da segunda guerra mundial e nos eventos que se desenrolam na grande casa, Darlington Hall, onde ele trabalha. Nisso, na relevância do ambiente em que vive, é que ele calça a justificativa de sua busca implacável por perfeição.

Kazuo+Ishiguro
(photo by Jeff Cottenden)
Ishiguro parece tão perfeccionista quanto o personagem, pois, apesar da fala prolixa do narrador, não há desvios na história, nem ambiguidades. Mesmo quando você acha que ele pecou nalgum ponto, quando, por exemplo, iniciava um capítulo como se tivesse pulado parte da história, surpreendia o leitor demonstrando que, com segurança, começou o capítulo pelo final e volta ao fato supostamente ignorado para completá-lo. Técnica assaz divertida.

Narrativas em primeira pessoa tendem a ser cansativas por se manterem sob ponto de vista exclusivo de uma só personagem (neste caso, Stevens). Mas o autor utiliza muitos recursos para desviar da monotonia deste único ponto de vista. O livro vai e volta ao passado do protagonista, mostra cartas, jornais e outros adereços, dando a impressão de que o narrador tem uma maior amplitude, mais vozes.

E, além disso, há uma narração subjetiva através dos demais personagens. Ishiguro usa a história contada por Stevens para deixar o leitor a par do que pensam eles, mesmo quando o próprio protagonista e narrador não entende (ou finge não entender) o que está acontecendo.

Por exemplo (ALERTA DE SPOILER! Este parágrafo será um spoiler, leia por sua conta e risco), quando Miss Kenten revela a Stevens que se casará com um pretendente, fica claro para o leitor, através de todos os fatores, reações e diálogos citados pelo próprio Stevens, que ela o ama e que o casamento é uma artimanha dela para por o protagonista em cheque e fazê-lo revelar-se. Contudo, Stevens mantém-se inexorável. Consciente ou inconsciente, diferente do leitor, ele ignora a mensagem de Miss Kenton em prol de seu profissionalismo exacerbado.

Não me vêm à mente passagens que tenham sido morosas. O ritmo do livro é constante. Sem emoções muito esfuziantes, nem, contudo, absolutamente rasas. Algo que, possivelmente, foi planejado pelo autor para harmonizar com a psique da personagem. Salvo um ou outro ponto de virada em que se percebe uma maior carga dramática que, obviamente, eu não citarei aqui em respeito àqueles que tencionam ler.

Julgando apenas por este livro seria incoerente dizer se Ishiguro merece ou não o Nobel. Com base nele, não obstante, é possível ter um ótimo vislumbre da perícia técnica do autor e da sua tremenda sensibilidade. Embora eu desconheça os axiomas da vida de um mordomo inglês, tem-se a impressão constante da segurança da obra em falar do assunto. Predicado provavelmente adquirido do amalgamento de sua origem japonesa e criação inglesa.

Por fim, vale citar que foi feito um filme com base nesta obra, estrelada por ninguém menos que o Sir Anthony Hopkins e a então jovem e belíssima Emma Thompson. Indicado a oito Oscars.

REMAINS OF THE DAY
REMAINS OF THE DAY, Peter Vaughan, Anthony Hopkins, 1993
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