O capricórnio se aproxima
Flavio Cafiero

“Vender enciclopédias”, “trabalhar em banco”, “comer pudim de pão”, “fazer aula de violão” e, finalmente, “ser de capricórnio”. Códigos familiares para assuntos proibidos para as crianças. É percorrendo esse mapa congestionado da linguagem que o leitor vai compreendendo lentamente o enredo cheio de humor e melancolia de O capricórnio se aproxima, do carioca Flavio Cafiero.
A personagem principal é João, um taxista que tenta se entender com as novas tecnologias exigidas pela profissão e com a necessidade de aprender inglês por conta da Copa do Mundo no Brasil. Porém, mais difícil do que operar um sistema de GPS ou arriscar um Go on, são as relações familiares, que podem parecer banais apenas para quem as vê de fora.
(…)
Surge então um outro mapa: o da cidade do Rio de Janeiro. E assim como o da linguagem, aqui há regras, sentidos obrigatórios, congestionamentos e riscos de acidentes. Os mapas – da linguagem e da metrópole – se sobrepõem criando camadas de significado.
(fonte: release oficial)

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Ainda conforme o release:

O capricórnio se aproxima é o primeiro livro do Selo JOTA, que tem coordenação e curadoria de Noemi Jaffe. A ideia original desta coleção partiu do pioneiro e consagrado Oulipo, grupo de escritores entre os quais se incluíam Italo Calvino, Raymond Queneau e Georges Perec. Todos os livros do JOTA partem de um desafio, de restrições narrativas que, por paradoxal que pareça, atuam de maneira a incrementar o texto ficcional.

Este é o primeiro livro de parceria do blog com a editora e-galáxia. E a leitura do parágrafo acima me deixou, ao mesmo tempo, curiosa e com o pé atrás. Pois, apesar de ser algo bastante válido como prática de escrita, será que é possível produzir algo com valor literário restringindo o exercício criativo com um conjunto de regras?

No caso deste livro, as regras foram as seguintes:

  • É expressamente proibido o uso de adjetivos;
  • É obrigatório o uso de todas as letras do alfabeto em cada um dos capítulos, incluindo K, W e Y. As repetições não serão consideradas;
  • É obrigatório o uso de pelo meno um numeral em cada capítulo;
  • Cada capítulo poderá ter no máximo 500 palavras.

Como profissional de TI, eu não conseguiria seguir lendo sem confirmar a aplicação correta do algoritmo (a lista de regras). Admito que reli os primeiros capítulos algumas vezes, tirando a “prova dos nove”. Depois, confiei que o autor continuou seguindo as regras e segui tranquila na leitura.

Não há dúvida de que qualquer regra é restritiva. Neste quesito, a primeira da lista é a que deve ter exigido mais criatividade para contornar. Duas opções se apresentam para substituir os adjetivos: adjuntos adnominais e orações subordinadas adjetivas. Felizmente para o leitor, o autor escolheu a primeira opção. Orações subordinadas, usadas em excesso, costumam deixar o texto cansativo e, por vezes, truncado, prejudicando a fluidez da leitura. Ao optar pelos adjuntos adnominais, deu-se um efeito colateral, a meu ver, benéfico: as frases curtas. Sim, há períodos longos, mas formados por uma profusão de orações coordenadas curtas, concisas, objetivas que, encadeadas, dão ritmo ao texto, deixando-o bastante dinâmico. O show, don’t tell tomou conta, com uma narrativa mais focada nas ações que nas descrições.

“A vó morreu, o quartel-general ficou, e João não consegue se livrar de Copacabana, mesmo com esses aplicativos de chamar táxi pelo celular que hoje emendam uma corrida na outra. É, até daria para prescindir de ponto. A distância entre Copa e a casa do João dobra a cada ano, o trânsito da cidade engripando a olhos vistos, mas não há o que reclamar de Copa em termos de freguesia, não me queixo, tem pencas de usuários por ali, gente que ainda pega táxi na rua, e muito idoso que conhece o João como o neto de dona Araci, o que garante certa fidelidade.”

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Flavio Cafiero (fonte: flaviocafiero.com)
A narração é feita em terceira pessoa, porém, em vários momentos, tem-se a impressão de que a voz narrativa saltou para a primeira pessoa, tamanha a proximidade criada. Isso se deve tanto ao dinamismo da escrita quanto à linguagem informal utilizada, assim como aos diálogos dispostos no meio do texto, imergindo o leitor na narrativa.

Além dos malabarismos de escrita para ater-se às regras, Cafiero brinca com as palavras e com o duplo sentido de expressões idiomáticas, enfatizando o vocabulário próprio utilizado pela família do protagonista para falar de coisas “impróprias” para crianças. Nâo há como não se identificar, já que todas as famílias fazem uso desse artifício, cada uma a seu jeito e com seu léxico próprio. “Vendedor de enciclopédia, “porra”, “trabalhar em banco” são algumas das expressões que o pequeno João, em sua inocência, tenta desvendar (junto com o leitor). E ao longo do texto, Cafiero vai brincando com esse uso de meias palavras, de encontrar o significado dos fatos nas entrelinhas das conversas.

“Esse aí é metido com banco, certeza. E a mãe entrava no jogo. Marido, você não sabe o que eu descobri, o Oswaldo trabalha mesmo em banco, juro, pegaram ele vendendo enciclopédia dentro de um carro no aterro do Flamengo, foi a Arlene que ligou contando. Como assim, trabalha em banco? Como assim, vendendo enciclopédia? Os dois? Ao mesmo tempo? É claro, tinha alguma coisa que não batia. Pai, o tio não é mais professor? E foi uma gargalhada geral. Até a vó, que nunca ria, riu.
(…)
Pai por que o tio foi pro xilindró? Vai ver que não podia ter três empregos no Brasil. Alguém devia ficar sem, ou não? O pai nem explicou.”

Um livro pouco extenso. Rápido, sem ser raso. Simples, sem ser simplista. É, sem dúvida, uma experiência de leitura diferenciada.

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Cristine Tellier
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