A caixa-preta
Amós Oz

A caixa preta a que se refere o título não pertence a um avião, e sim a uma relação amorosa desfeita. Anos depois do divórcio escandaloso, a esposa rejeitada Ilana emerge das cinzas do tempo, da distância e do rancor para passar a limpo seu casamento com Alex Guideon, professor e escritor mundialmente famoso. Ao mesmo tempo, por trás de paixões pessoais tão intensas que beiram a loucura, desenha-se com precisão o complexo panorama social, religioso e político da vida em Israel nos últimos anos. Fortemente erótico, mas também engraçado e poético, A caixa preta só revela aos poucos sua sabedoria mais funda e amarga: somente a proximidade da morte e a consciência da finitude do corpo podem apaziguar as paixões.
fonte: quarta capa do livro

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O livro foi escrito em formato epistolar. A trama é estruturada a partir da correspondência entre os personagens – Alex Guideon, o professor e escritor que mora nos EUA; a ex-esposa de Guideon, Ilana Sommo, que mora em Israel; o filho do casal, Boaz Brandstetter; o atual marido de Ilana, Michael Sommo; os advogados de Guideon – esses telegramas são sem dúvida o alívio cômico da narrativa; e alguns parentes e amigos. E acredito que essa estrutura justifique o título. É como se fosse dada ao leitor uma caixa cheia de documentos que, similar à caixa-preta do avião, conte através de seu conteúdo a história do desastre.

De modo cirúrgico, o autor expõe as mazelas do relacionamento de Alex e Ilana que, apesar da maneira pouco amigável como se deu o divórcio, dão a entender em suas cartas que subsiste ainda certo afeto entre eles. Contudo, é a forma com que desnudam seus sentimentos e pensamentos nas cartas que atinge o leitor com mais pungência. Não há meias palavras, nem meias verdades. O término do romance, a ruína do relacionamento, a incapacidade de convivência são expostas com requintes de crueldade.

“Agora você pode parar de ler e jogar esta carta direto no fogo. (Por alguma razão sempre imagino você num aposento comprido, cheio de livros, sentado sozinho junto a uma escrivaninha preta, e diante de você, através da janela, estendem-se planícies cobertas de neve. Planícies sem colinas nem arvores, neve brilhante e árida. Um fogo arde na lareira à sua esquerda, e um copo vazio e uma garrafa vazia estão sobre a escrivaninha vazia em frente a você. A imagem toda é em preto-e-branco. Você também: asceta, arrogante, alto, e todo em preto-e-branco.”
(p.7)

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Amós Oz
Por outro lado, a correspondência de Michael deixa entrever um ativista político e religioso, cuja militância vai se revelando cada vez mais extremista e radical. À medida que suas ideias vão se manifestando, a aura de “príncipe encantado” com que Ilana o descreve para Alex vai se desfazendo. O professor, pai de família devotado, o provedor zeloso vai sendo deixado de lado. Enquanto isso, assume o ativista ambicioso que em prol da causa e, usando-a como justificativa, deixa-se levar pela ganância. E procura ocultar essa ganância sob o véu da dedicação e da aplicação da justiça, tendo como pretexto a dívida moral que insiste em dizer que Alex tem em relação a Ilana e Boaz.

“E quanto o nosso Sommo, ele está estrelando o papel de ministro do Exterior. Está envolvido num agitado lobby. Nada pelos corredores do poder como um peixe ou uma alga. Passa dias inteiros em companhia da ativistas, deputados, secretários-gerais e diretores-gerais. Circula dentro e em volta da corte do irmão, prega amor por Israel aos funcionários da administração militar, infiltra anseios de redenção no Ministério do Comércio e Indústria, desperta os paroxismos messiânicos no pessoal da diretoria da Ocupação de Solos, faz pregações, implora, adula, menciona versículos, difunde uma densa nuvem de sentimentos de culpa com uma das mãos no coração e a outra nos ombros do interlocutor, adoça tudo com mel bíblico, polvilha com homilias, tempera com uma pitada de mexericos, arranja licenças e autorizações e, em resumo, abre incansavelmente as sendos do Fim dos Tempos e também consolida rapidamente nossos investimentos ao sul de Jerusalém.”
(p.156)

Acredito que um maior conhecimento sobre a realidade atual de Israel, dos aspectos políticos e religiosos, teria tornado a leitura mais rica. Há vários detalhes que possivelmente escapam devido a essa lacuna. E creio que talvez, em parte por isso, os personagens não gerem tanta empatia. Alguns de seus comportamentos, de suas motivações parecem deslocadas e parecem carecer de sentido em nossa sociedade ocidental.

A escrita epistolar é, sem sombra de dúvida, meu formato narrativo predileto. Agrada-me tanto pelo desafio proposto a mim, leitora, de delinear os personagens e “montar” a história a partir de cartas, telegramas, diários e outros documentos, quanto pelo deleite ao testemunhar o êxito do autor ao fazer isso. É interessante perceber a maneira como o autor conduz o leitor através da trama sem fazer uso de um narrador que conta a história, revelando detalhes da trama e da personalidades dos personagens através de missivas. Não é à toa, que Drácula e Ligações perigosas estejam entre meus livros prediletos. Contudo, a falta de identificação com os personagens fez com que eu não incluísse este livro nessa lista.

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Cristine Tellier
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