Primavera num espelho partido
Mario Benedetti

Já tinha ouvido falar do autor, ou melhor, já tinha ouvido falar muito do autor. A Denise Mercedes, do canal “Cem anos de literatura” (antes chamava-se “Meus olhos verdes”), é fã incondicional e comenta sobre ele e seus livros com tamanha paixão que há algum tempo estava com vontade de ler algo dele. E, apesar da minha extensa lista de livros comprados e não lidos, surgiu uma oportunidade quando o livro selecionado para o Clube de Leitura d’Os espanadores foi Primavera num espelho partido (conheça o blog e o canal). Infelizmente não pude comparecer ao evento, mas o livro foi lido. Lido e imediatamente alçado àquela categoria de livros sobre os quais a gente exclama (não sem um certo pesar): “Powtz, por que não descobri este autor antes?!”.

primevera num espelho partido - capa

A história gira em torno de Santiago, preso durante a ditadura uruguaia – imposta ao país de 1973 a 1985 -, e Graciela, sua mulher. Para ele, detido em sua cela, é como se o tempo tivesse parado. Já Graciela é obrigada a se mudar para a Argentina com Beatriz, sua filha pequena, e a reconstruir sua vida. Mas só perceberá tarde demais que suas escolhas a levaram a um rumo imprevisível, e talvez sem volta.
(fonte: quarta capa do livro)

Na edição anterior do Clube, quando se escolheu qual seria o livro seguinte, votei nele não apenas porque a estória me pareceu interessante, mas também pela estrutura narrativa diferenciada. Explico-me. A história é contada a partir de múltiplos pontos de vista. Cada um dos envolvidos dá ao leitor sua visão dos acontecimentos. E cada uma das narrativas é feita de uma forma. O personagem da vez é identificado a partir do título do capítulo.

Intramuros (depois, Extramuros)

Santiago conta sua visão através de cartas enviadas a Graciela e a seu pai, Dom Rafael, sem data definida. A correspondência é controlada, ou melhor, censurada mesmo – conteúdo considerado impróprio pela segurança do presídio não são permitidos. E assim, Santiago vê-se obrigado a fazer seus relatos, queixas, divagações, quase em linguagem cifrada, repleta de metáforas, entrelinhas e segundos sentidos. Apesar de toda a situação, suas missivas são líricas e otimistas. Há, por trás delas, a alegria por ainda estar vivo, a esperança num porvir favorável a ele e seus companheiros, a satisfação de conseguir se manter íntegro. Contudo, é incômodo perceber que, para ele ali confinado, o tempo parou, enquanto além das paredes do presídio, a vida segue.

Beatriz

Em 1a. pessoa, Beatriz, a filha de Graciela e Santiago, narra os fatos conforme sua óptica infantil e, por que não dizer, particular. Na minha opinião, são os melhores capítulos. Confesso que, por várias vezes incapaz de me ater a apenas um sorrisinho, ri alto sozinha, no metrô, no ônibus, no trem. É interessante notar como a narrativa de Juan Pablo Villalobos, em Festa no covil (post aqui), se assemelha a esta. Ambos autores conseguiram captar e reproduzir tanto o vocabulário quanto a percepção da realidade pelas crianças, com seu fio de raciocínio ao mesmo tempo lógico e inocente.

“Neste país se dorme muito. Sobretudo nos domingos, porque são muitos milhões dormindo. Se cada um que dorme ronca nove vezes por hora (minha mãe ronca quatorze), quer dizer que cada milhão de habitantes ronca nove milhões de vezes por hora. Ou seja, os roncos grassam por aqui.”
(p.81)

Dom Rafael

Também em 1a.pessoa são os capítulos em que Dom Rafael discorre sobre suas impressões a respeito da situação do filho e também do momento atual do país. São os capítulos com conteúdo político mais presente e, em vista disso, os mais pessimistas e os mais longos. Talvez por isso agradem menos que o restante da história. Mas não deixam de ser bem interessantes, além de acrescentar bastante à trama.

Feridos e contundidos | O outro

Os capítulos de Graciela e do outro (Rolando Asuero) são narrados em 3a.pessoa, o primeiro repleto de diálogos e o segundo num discurso indireto livre. Cada um a seu modo, pensam sobre os acontecimentos que os conduziram a essa situação. E, cada um a seu modo, refletem sobre si próprios, seus sentimentos em relação ao outro, seus pensamentos em relação a Santiago. Enquanto Rolando é o namorador (leia-se ‘pegador’) que percebe-se interessado na esposa do amigo preso, Graciela vê-se aos poucos, aparentemente sem motivos, se desapegando de Santiago e, nesse processo, descobre-se apaixonada pelo amigo do marido.

Exílios

mario benedettiHá, além dos capítulos dedicados aos personagens, alguns em que o próprio Benedetti narra sua experiência como dissidente político na época da ditadura militar. Isso, ao invés de interromper o fluxo narrativo e a imersão do leitor, complementa e enriquece a leitura de modo quase inesperado. É aquele post-it no cantinho da página lembrando ao leitor: “Ei, esta obra é ficcional, mas a situação vivida pelos personagens é bem real.”

Essa alternância de vozes narrativas é um diferencial que dá ao romance fluidez suficiente para envolver o leitor irreversivelmente. Não há como não se conectar a eles e não se preocupar com seus destinos. Garanto que este livro foi uma ótima introdução à obra de Benedetti, que eu espero ler mais em breve.

[cotacao coffee=”capuccino”]

[compre link=”http://el2.me/LasG” bookstore=”amazon”]

Cristine Tellier
Últimos posts por Cristine Tellier (exibir todos)
Send to Kindle

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *