james joyce

“De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal. É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.”

“É… Hein?! Pode repetir?”, é o que digo mentalmente ao me deparar com trechos como este, O Guarani, de José de Alencar. Não importa o quanto sejamos eruditos – no meu caso, muito pouco – há combinações de palavras que simplesmente têm dificuldade de se acomodar no entendimento. Achei, outrora, que fosse uma questão temporal. Em detrimento ao ano em que a obra foi escrita. Mas, não. Machado de Assis, que era contemporâneo do Zézinho aí, escrevia definitivamente sem excessos. Era meticulosamente preciso. Já nosso amigo do trecho acima parecia gostar de engordar seus parágrafos como se fossem leitõezinhos para o natal. E, além disso, mesmo hoje em dia, em que os autores têm certa “liberdade” de formas e formatos para escrever, sem a pesada mão da norma-culta a lhes tolher a ousadia literária, ainda há autores que preferem o estilo rocambolesco à linguagem fluida.

Pensando nisso é que resolvemos lhes dar cinco exemplos (apenas cinco, para não sermos prolixos) de livros e autores que insistiram em egregiar seus solilóquios com termos e construções gramaticais grandemente galhardas e cheias de “Ui! Nóiz é chique, bem!”.

Antes, entretanto, é preciso esclarecer que o fato da obra ser complexa de ler não significa que não tem qualidade. Não confundamos alhos e bugalhos. Muitas das vezes é isso confere a ela trejeitos de clássico.

Miguel_de_CervantesDom Quixote, de Miguel Cervantes
Este sim, é velho. Segundo Wikipedia, algo entre 1547 e 1616. Numa época em que pouca gente sabia ler, era pura sacanagem usar termos como “galhardo”, “testilhas”, “rubicundo” e, minha preferida, “pudibunda”. Inda pior revirar as frases e orações pelo avesso, fazendo uso de todos as formas possíveis que se lhe permite a língua latina. No caso de Cervantes, o espanhol. Mira esto:

“Passadio, olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro, as mais das ceias restos da carne picados com sua cebola e vinagre, aos sábados outros sobejos ainda somenos, lentilhas às sextasfeiras, algum pombito de crescença aos domingos, consumiam três quartos do seu haver. O remanescente, levavam-no saio de belarte, calças de veludo para as festas, com seus pantufos do mesmo; e para os dias de semana o seu bellori do mais fino.”

massaud moisesA Criação Literária, de Massaud Moisés
Tudo bem. É um livro sobre criação literária. Pressupõe-se que quem vai ler é alguém que já tem certa intimidade com vários tipos de leitura. Mas o tiozinho força a barra em alguns momentos. Além das palavras mais raras e construções gramaticais complexas, ele é bastante prolixo. A fim de conceituar alguma coisa, ele volta às bases mais obscuras da concepção inicial da ideia, o que é, muitas vezes, desnecessário para o entendimento do que se está abordando. É a prova de que pomposidade literária não têm época.

“Assente o conceito de gênero, podemos retomar a questão relativa à sua preexistência ou não. Antes de tudo, atentemos em um truísmo: os gêneros (ou aquilo que por esse vocábulo se designa) existem como fato consumado, pois, em caso contrário, não desencadeariam tanta discussão.”

Guimaraes-RosaGrande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa
Retomo aqui o que fora dito no início do post. A dificuldade da linguagem não define a qualidade. E esse cara é um fiadaputa. Foi a prosa mais complexa que já li. Simplesmente porque nosso amigo escreve refletindo o sotaque sertanejo mais arraigado, mais tradicional, usando a linguagem e a construção gramatical em favor do contexto de sua história. E, como se não bastasse, fez fama como neologista. Ou seja, cria palavras – isso mesmo, cria palavras – que não tem, todavia, nada de inadvertidas. São frutos de profunda análise filológica. Simplesmente genial:

“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…”

james joyceFinnegan’s Wake, de James Joyce
O “problema” deste livro nem é a erudição do texto. Seu calcanhar de Aquiles é a quantidade imensa de palavras inventadas. A exemplo de nosso Guimarães Rosa – mas elevado à décima potência – Joyce escreve inventando termos a partir de outros existentes – ou não. Não satisfeito em criar um vocabulário baseado em sua língua mãe, o inglês, misturou outros idiomas – francês, alemão, espanhol, entre muitos outros. Ou seja, um inferno para os tradutores que, por várias vezes não fazem ideia de qual idioma traduzir. Para piorar ainda mais, essa língua inventada sequer tem um léxico próprio. Tolkien ao menos deu-se ao trabalho de criar idiomas “completos” – palavras, regras de uso e gramática. Joyce dispensou isso e entrega ao leitor um texto ainda mais hermético que seu Ulysses:

“…ele afundou suas recém-ungidas mãos, o cerne do pulso, na caudalosa corrente de seus singimari cabelos, partindo-os, tranqüilizando-a, misturando-os, isto se deu na escuridão e na Vermelha amplidão do crepúsculo. Junto ao lucylado no Vale de Vaucluso,as arrongeadas cores do arco-iris a orangeavam. Afroginosos galbos, seus olhos esmaltados, índigo-envolventes, virginais, violáceos. Desejo um desejo!”

E, além das palavras esdrúxulas, há o uso de algo semelhante àquelas onomatopeias das HQs – representação escrita de um som. Como a que aparece logo na primeira página do romance:

“Bahabadalgharaghatakamminarronnkonntonnerronntuonnthunn
trovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!”

umberto ecoO pêndulo de Foucault, de Umberto Eco
Conheci Umberto Eco lendo seu primeiro romance, O nome da rosa, e logo me tornei fã de sua escrita. Mal sabia eu que me decepcionaria com seus livros seguintes, voltando a apreciar sua obra apenas ao ler O cemitério de Praga. É ponto pacífico que Eco escreve muito bem. Contudo, sua erudição não costuma depôr em seu favor. A maioria de seus textos – e O pêndulo de Foucault é o exemplo mais exagerado – transborda prolixidade, beirando o pedantismo. O pobre leitor é soterrado por informações irrelevantes à trama, cuja motivação parece ser única e exclusivamente mostrar a ele o quanto o autor é inteligente, culto, erudito – pejorativamente falando. Tem-se a impressão de que Eco, a cada parágrafo, faz questão de inflar o peito e afirmar “Vê? Percebe o quanto sei sobre este assunto? Sou o mais preparado para escrever sobre isto.”

“Agora já estava me habituando àquela alternância de angústia e confiança, terror e desencanto (não se trata de fato de um início de doença?) e pensei que as visões da igreja me haviam perturbado porque chegara a elas seduzido pelas páginas de Jacopo Belbo, que as decifrara à custa de tantos volteios enigmáticos – e que no entanto sabia fictícios. Estava num museu da técnica, dizia para mim, estás num museu da técnica, uma coisa honesta, talvez um pouco obtusa, mas num reino de mortos inofensivos, sabe como são os museus, ninguém jamais foi devorado pela Gioconda – monstro andrógino, Medusa só para estetas – e muito menos serás devorado pela máquina de Watt, que só podia espaventar os aristocratas ossiânicos e neogóticos, e por isso surge assim tão pateticamente comprometedora, toda funções e elegâncias coríntias, manivela e capitel, caldeira e coluna, roda e tímpano. ”

Em nossa jornada como aprendizes de escritor, inúmeras vezes lemos que o ideal é que um texto contenha só e somente o que é necessário. Cada palavra, cada frase precisa ter uma justificativa plausível para estar ali. Como os senhores supracitados são gênios a literatura, é de se supor que o tenham feito desta forma, com profundos objetivos. Às vezes tão profundos que acabaram ficando obscurecidos em meio a tão intrincadas palavras.

Este post foi escrito em co-autoria com a Srta. Cristine Tellier.

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