Na vida há o que se pode escolher e há o que não se pode. Nada mais óbvio. É um conceito simples que nos damos conta tão logo começamos ter nossas primeiras percepções de mundo. Salvo situações peculiares, podemos escolher usar ou não determinada roupa. Podemos escolher tomar banho ou não. Podemos escolher o corte de cabelo. Trivialidades do dia a dia cujo gosto vai sendo moldado do decorrer do desenvolvimento de nossa psique.

Não podemos, entretanto, escolher nossa ascendência. Não podemos escolher a cor da nossa pele. Não podemos escolher deixar de sermos deficientes físicos. Não podemos escolher ser saudável. Ao menos não sem intervir nisso de uma forma radical e agressiva.


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O livro A Inevitável História de Letícia Diniz não mudou nenhum de meus conceitos. Mas organizou e elucidou algumas coisas sobre as quais eu ainda não tinha muita base para solidificar as opiniões. Não é um livro muito bem escrito. Levemente prolixo para o meu gosto e parece destoar um pouco o tom da linguagem, indeciso, tendendo hora para o erudito, hora para a linguagem coloquial e até chula (penso que uma obra pode ser bem escrita em qualquer forma de linguagem, desde que se decida sobre a qual seguir). Mas desenrola uma história muito interessante e muito, muito triste.

Lá, Letícia Diniz é uma travesti que sai de um ponto remoto do Brasil para tentar a sorte no Rio de Janeiro. “Hummmm… Travesti… ”. Já estou vendo algumas pessoas torcendo o nariz ao lerem. É natural. Não existem indivíduos mais párias na sociedade do que as travestis. Com suas belezas exóticas, seu glamour, seu mundo e linguagem próprios que só fazem torná-las ainda mais afastadas do que é considerado “sociedade comum”.

Enfim… Quando peguei o livro na mão, indicado pela minha esposa, não titubeei para lê-lo. Corroboro profundamente com a máxima de Ray Bradbury de que um escritor deve ler de tudo. Ser influenciado por qualquer tipo de assunto e linguagem. E eu, sem saber nada sobre esse mundo, estava também curioso.

Tudo começa com uma passagem forte. Um menino, pego pelo pai usando as roupas da irmã, sofre uma agressão brutal e é expulso de casa, tendo de passar a viver com um tio, travesti já assumido há algum tempo. E então, vem a fase de transformação do menino em menina.

Transformação? Será? Se há algo que o livro deixa claro, é que – seja o que for o que leva um menininho a tornar-se um travesti, se traumas psicológicos, se um transtorno neural ou mesmo uma evolução natural da espécie humana, não importa – essas pessoas não estavam à vontade com a atual conjuntura em que se encontravam. Era como se, sendo homem, se sentissem como um deficiente preso numa cadeira de rodas. Limitados. Deslocados em si mesmos. No caso, num corpo masculino. Então, não é necessariamente uma transformação. Letícia internamente nunca fora um homem. Era uma mulher.

“Mas nasceu menino. Tinha pinto! O sexo estava definido.” Alguém me disse. Estava mesmo? É só o fato de ter um pinto que define ser homem ou mulher? Isso me parece um pouco limitado. O conhecimento científico sobre o cérebro humano ainda é limitado. Então como ter certeza de que são apenas as características físicas e fisiológicas que definem a sexualidade? Notem bem: Eu disse sexualidade, não opção sexual.

Freud inicialmente afirmava que o homossexualismo (questão um pouco diferente dos travestis, mas que na época provavelmente era considerada a mesma coisa) ocorria como um fenômeno que era resultado de trauma durante a infância. Mas atualmente essa tese já caiu por terra. Justamente por que a sexualidade não é uma questão psicológica. O trauma pode intensificar, desencadear outros tipos de condições, mas isso não é válido apenas para travestis. Muitos psicopatas – sem querer comparar uma coisa com a outra – também nascem psicopatas sem a necessidade do trauma. Isso apenas desperta neles o serial killer adormecido.

Permito-me pensar, com base nestas questões levantadas, que sexualidade não é opção. Eu sou homem. Penso como um homem, ando como um homem, falo como um homem. Faço isso naturalmente. Ninguém me ensinou a ser homem. Eu não escolhi ser homem. Simplesmente o sou.

Por que pensaria então que um menino se comporta como menina porque quer? Não é factível que tal qual a nós, pessoas supostamente “normais”, eles simplesmente são como são porque essa é a sua natureza, porque sua sexualidade, seu sexo para ser específico, é de uma mulher não obstante seu corpo seja de um homem?

Bem, independente desta questão, é ponto pacífico que por isso eles acabam tornando-se uma minoria à parte da sociedade. Marginalizada. Tratada com desprezo e com indiferença pela sociedade. Vistas como criaturas de circo que têm um propósito de servir como uma fonte circunstancial de prazer ou divertimento e depois devem voltar para suas jaulas, longe da visão daqueles que consomem seus serviços.

A conseqüência disso é solidão, depressão, marginalização e a degradante prostituição. Como até então vivi alheio a essa questão, sempre imaginava estupidamente que o “travestimento” era uma conseqüência da prostituição. Que ledo engano… A prostituição e toda a lascívia e perversidade atribuída aos travestis são resultados da marginalização que lhes é imposta.

Isto acaba se tornando para a maioria delas o único meio de vida, visto que raramente alguém se predispõe a contratar outrem sem julgar se a sua imagem está de acordo com o padrão social esperado. O mercado que lhes é aberto é restrito para aquelas que tem um talento especial para cabeleireira, por exemplo, mas para aquelas cujos talentos são outros dificilmente haverá uma chance para desenvolver-se profissionalmente.

Comentar sobre esse livro com amigos (homens principalmente) fica entre engraçado e triste ao mesmo tempo. É engraçado ver as reações abruptas de surpresa e constrangimento sobre o assunto e ao mesmo tempo triste, pois carregadas de preconceitos. A grande maioria diz com veemência “eu não tenho preconceito!”, mas gagueja quando eu pergunto “então você não teria problema em ser visto num café, fazendo um lanche com um amigo travesti, certo?”.

Perguntaram-me se eu teria uma relação com um travesti. Confesso: Eu parei e pensei um pouco. Veio-me à cabeça o bullying que já passei na infância, as críticas subliminares dos meus pais e parentes em relação à minha dificuldade de sociabilizar com meus colegas e amigos. Mas também a força que eu cultivei para passar por cima destas bobagens e perceber que eu sou o que sou, faço o que faço e foda-se o mundo. Então respondi: Se não fosse casado e me envolvesse com um travesti e achasse que ela me faria feliz, sim, eu teria uma relação e ainda passearia por aí de mãos dadas.

Minha opção sexual é pelas mulheres. Se for possível identificar que um indivíduo é uma mulher, mesmo que tenha uma “extensão” que contrasta um pouco na harmonia do conjunto, não vai ser isso que vai mudar o que se sente, certo? Seria mais ou menos como dizer que uma cadeira de rodas pode definir o que você vai sentir por alguém.

Não quero levantar bandeiras. Não sou a favor de nenhum tipo de preconceito e nem de mudança de opinião à força. Sob meu ignorante ponto de vista, bandeiras levantadas por minorias, forçando idéias, são também uma forma de expressar preconceito e censura. Uma coisa é exigir o cumprimento de seus direitos, outra coisa é forçar alguém a aceitar alguma ideia.

Mas eu não vejo a questão do livro desta forma, como se as travestis fossem uma “facção”, uma classe especial de reivindicadores de direitos. Pelo menos não mais. Eu os vejo agora com mais respeito (pois sempre respeitei de qualquer forma). Por que – independente do que elas desejam ser, homens, mulheres ou um terceiro sexo – são seres humanos. E penso que o respeito é a chave mestra para a glória definitiva da sociedade.

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5 Replies to “A Inevitável História de Letícia Diniz”

  1. Douglas, antes de mais nada quero cumprimentá-lo e tirar o meu chápeu para o seu talento para a escrita. Realmente, como diz um velho ditado, “quem é bom já nasce feito”. E, olha, eu fiz faculdade de Letras, fiquei um ano tendo a matéria “Crítica Literária” e, acho muito interessante notar que uma pessoa que, suponho eu, não tenha se embrenhado no tecniquês do que é fazer uma crítica, faça isso de uma forma tão natural, pragmática e talentosa. Parabéns!

    Quanto ao seu texto em si, gostaria de expressar algumas coisas. Você usa o termo “opção sexual” em alguns pontos e, em algum momento você diz que não existe “opção sexual”, porém, mais abaixo faz novamente uso do termo.

    Bem, isso me lembra uma repórter que certa vez, entrevistando a mãe do Cazuza, pergunta para ela: “Lucinha, porque o Cazuza decidiu ser gay?”, no que ela responde: “Mas o Cazuza não decidiu ser gay, por que ninguém resolve sofrer”.

    E é bem isso, ninguém um dia acorda, olha-se no espelho e se diz: a partir de hoje começarei a gostar de homens, ou de mulheres. Caso fosse uma escolha, por qual motivo alguém escolheria ser alvo de preconceito pela família, ser xingada na rua, ser vetada em entrevistas de emprego, ser apontada ou ver constantemente que as pessoas estão cochichando ao seu respeito, não ter a liberdade sequer de andar de mãos dadas com a pessoa que ama…? Caso fosse uma escolha, escolheria-se o que a maioria escolheu, daria menos trabalho. Mais correto seria fazer uso do termo “orientação sexual”.

    Outra ressalva que eu gostaria de fazer é quanto ao termo “homossexualismo”. Antes de tudo, é bom frisar que ninguém faz uso do termo “heterossexualismo”, e por quê? Bem, o sufixo “-ISMO” denota doença e, em 1948 a homossexualidade entrou no CID (Catálogo Internacional de Doenças), institucionalizando o que por séculos o cristianismo incrustou na cabeça das pessoas: “homossexualismo” é doença! No dia 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade dessa lista (note como é recente a coisa) e, com isso, esse termo “homossexualismo” tornou-se errôneo “oficialmente”. Apesar de parecer não ter grandes consequências trocar um termo pelo outro, eu sempre achei que são as pequenas coisas que não nos importam que fazem com que construamos ou destruamos o outro.

    Quanto à sua afirmação de que Freud afirmava que a homossexualidade tinha como explicação um trauma infantil, bem, primeiro é bom esclarecer que para Freud, não só a homossexualidade carecia de explicações, como também a heterossexualidade. Freud não achava natural que os indivíduos fossem heterossexuais e, em seu texto “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ele diz que teríamos todos uma predisposição biológica para a bissexualidade, e que no curso do desenvolvimento, tende a se tornar monossexualidade, por meio da dissolução do complexo de Édipo. Acho perigoso o fato de muitos autores dizerem que Freud tratou a homossexualidade como algo doentio, quando nesse mesmo ensaio ele refuta a teoria de que os homossexuais teriam uma degeneração. De forma que, quando você afirma que “a sexualidade não é uma questão psicológica”, novamente eu discordo – em partes. Sim, a sexualidade não é definida apenas e tão somente por meio do fator psíquico, a sexualidade é sim uma construção múltipla e, para a sua solidificação devemos levar em conta os fatores psicológico, social e biológico. As infinitas ligações que essas áreas fazem, vão nos dar alguma pista de como desenvolveu-se a sexualidade naquele organismo humano em específico.

  2. Quanto a sua opinião sobre as travestis e a sua coragem de assumir o que pensa sobre elas, olha, precisa ser muito homem, muito humano e muito digno pra dizer o que você disse. Uso a frase que ouvi de uma travesti: “A travesti é como uma ilha, rodeada de violência por todos os lados”. As pessoas gostam de dizer que o ser travesti ou o ser homossexual é o que faz as pessoas terem aquela vida tão degradante que tanto observamos no noticiário ou pelas ruas, quando na verdade é justamente o contrário, não é o travestismo ou a homossexualidade em si que são problemáticos, mas sim as demonstrações de ódio e preconceito que a sociedade dirige a essas pessoas, proibindo-lhes de ter uma vida dita “normal”.

    Quantas empresas dariam emprego para uma travesti ou para um gay afetado? Raríssimas. E depois os culpam pela prostituição e os chamam de promíscuos.

    Eu também o vejo com mais respeito do que já o via, pelo que aqui já li, desejo que continue essa sua trajetória, daqui há pouco você estará escrevendo crítica literária em jornais e revistas.

  3. Deveriam existir mais como você…livres do preconceito e da falta de respeito quando se fala em diferenças, em crenças, gostos ou opções!
    Sua escrita é leve e me faz ter a impressão de estar sentada numa mesa batendo um papo com um amigo.
    Em tempo, trabalho com a Glaucia por isso cheguei até seu blog.

    Abs,

  4. Como fui citada na crítica acima não poderia deixar de comentá-la. O livro “A inevitável história de Letícia Diniz”me chocou, me emocionou e me fez sentir muito preconceituosa.
    Me chocou por me mostrar a dura realidade da vida dos travestis;
    Me emocionou por ser uma história triste que humaniza pessoas que são ora “transparentes” às pessoas “comuns” ora humilhadas e hostilizadas por hipócritas que utilizam os seus serviços.
    Me fez sentir muito preconceituosa pois eu era mais uma que achava que as travestis eram prostitutas por opção: eu nunca tinha me colocado no lugar delas e percebido que a sociedade não as empregam como as demais pessoas.
    Enfim, um livro ótimo que teve uma crítica muito bem escrita pelo meu digníssimo esposo.
    Aconselho todos a lerem.
    Te amo marido, parabéns por mais essa crítica tão bem escrita.
    Gláucia

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