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A mão esquerda da escuridão
Ursula K. Le Guin

“Genly Ai foi enviado a Gethen com a missão de convencer seus governantes a se unirem a uma grande comunidade universal. Ao chegar no planeta Inverno, como é conhecido por aqueles que já vivenciaram seu clima gelado, o experiente emissário sente-se completamente despreparado para a situação que lhe aguardava. Os habitantes de Gethen fazem parte de uma cultura rica e quase medieval, estranhamente bela e mortalmente intrigante. Nessa sociedade complexa, homens e mulheres são um só e nenhum ao mesmo tempo. Os indivíduos não possuem sexo definido e, como resultado, não há qualquer forma de discriminação de gênero, sendo essas as bases da vida do planeta.”
(fonte: quarta capa do livro)

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Publicado originalmente em 1969, está entre os primeiros livros publicados no gênero de ficção científica feminista. A obra faz parte do Ciclo de Hainish – série de contos e romances ambientados no universo ficcional de Hainish. Ganhador dos prêmios Hugo e Nebula de Melhor Romance, concedido por fãs e escritores respectivamente, foi o terceiro colocado numa pesquisa realizada pela revista Loccus para eleger os melhores romances de ficção científica – atrás de Duna, de Frank Herbert, e O fim da infância, de Arthur C. Clarke.

“O artista lida com o que não pode ser dito em palavras.
O artista cujo meio é a ficção faz isto em palavras. O romancista diz em palavras o que não pode ser dito em palavras.”
(Introdução – p.11)

“Toda ficção é metáfora. Ficção científica é metáfora. O que a separa de formas mais antigas de ficção parece ser o uso de novas metáforas, tiradas de alguns grandes dominantes de nossa vida contemporânea – ciência, todas as ciências, entre elas a tecnologia e as perspectivas relativista e histórica. A viagem espacial é uma dessas metáforas; assim como a sociedade alternativa, a biologia alternativa; o futuro também. O futuro, em ficção, é uma metáfora.”
(Introdução – p.11)

Com uma introdução dessas, como não iniciar o livro já achando a autora fantástica? E, felizmente, as expectativas não foram frustradas. Muito ao contrário, foram superadas durante a leitura. Mas vamos deixar minha opinião – e todo o confete – de lado e (tentar) falar da obra de forma isenta.

Diferente de boa parte dos sucessos mais recentes na categoria ficção científica, a obra não é uma distopia. Ela descreve, sim, um mundo utópico em que a humanidade alcançou a paz tão cobiçada através da cooperação com outros povos, outros mundos. O protagonista, Genly Ai, é um enviado do grupo de civilizações de que a Terra faz parte, o Ekumen, em visita a Gethen. Genly Ai viaja sozinho seguindo uma norma do Ekumen – similar à Primeira Diretriz, de Star Trek – a fim de deixar claro aos habitantes e às nações de Gethen que sua intenção é estabelecer um canal de comunicação entre as civilizações, não é colonizar.

É interessante observar o jogo político que se inicia após sua chegada e a teia de influências que se forma ao seu redor. Ele se vê envolvido em um cabo-de-guerra entre as duas nações mais poderosas, Orgoreyn e Karhide, sem nem mesmo entender como foi parar ali, já que os costumes e tradições lhe são estranhos e, por muitas vezes, enigmáticos. Nesse cenário, a autora aborda questões como lealdades políticas, traições, fidelidade a pessoas ou a uma causa. Por sentir-se “um estranho numa terra estranha” (citando Heinlein), o protagonista tem dificuldade para perceber quem é seu aliado ou seu inimigo – principalmente porque aparentemente esses papéis vão se alternando conforme a trama evolui.

O leitor se angustia com Genly Ai, sentindo sua agonia ao tentar “desfazer” o sentimento de xenofobia dos habitantes – causado não só por ele ser um estrangeiro, mas por ser diametralmente diferente, fenotipicamente falando. Conforme já citado, os gethenianos são ambissexuais, sem diferenciação por gênero. Eles adotam características sexuais (femininas ou masculinas) apenas uma vez ao mês, em um período semelhante ao cio – o kemmer, época de receptividade sexual e fertilidade. O estranhamento que Genly Ai experimenta em relação à inexistência de diferenciação sexual entre os gethenianos é exposto pela autora de forma tão concisa e, ao mesmo tempo, visceral que o leitor é várias vezes compelido a parar a leitura e refletir a respeito. Grande parte do mérito da obra é justamente o questionamento da implicação desse fato na sociedade e na cultura getheniana. Por não haver diferenciação, não existem papéis definidos conforme uma lógica heteronormativa. Não há “sexo frágil”. Não há como inferiorizar o “feminino” quando o próprio rei engravida.

E o estranhamento é mútuo. Estraven, um karhadiano com quem o protagonista interage bastante durante a trama, também tem dificuldade em compreender o lado de Genly Ai. Este, por nunca ter tido necessidade de parar e refletir a respeito, tem dificuldade para explicar como “funciona” a diferenciação por gênero e suas implicações na sociedade humana.

“(…) Elas diferem muito do seu sexo no comportamento? Elas são como uma espécie diferente?
– Não. Sim. Nâo, claro que não, não realmente. Mas a diferença é considerável. Acho que a coisa mais importante, o fator isolado de maior peso na vida de alguém é se nasceu macho ou fêmea. Na maioria das sociedades esse fator determina as expectativas da pessoa, suas atividades, seus pontos de vista, sua ética e conduta… quase tudo. Vocabulário. Usos semióticos. Roupa. Até a comida. As mulheres… as mulheres tendem a comer menos… É extremamente difícil separar as diferenças inatas das aprendidas. Mesmo onde as mulheres participam, em igualdade com os homens, na sociedade, ainda são elas, afinal, que ficam grávidas e cuidam praticamente sozinhas da criação dos filhos…
– A igualdade não é a regra geral, então? Elas são mentalmente inferiores?
– Não sei. Parece que não é comum terem inclinação para a matemática, composição musical ou pensamento abstrato. Mas não é que sejam estúpidas. Fisicamente, são menos musculosas, mas vivem mais que os homens. Psicologicamente…”
(p.227)

A história é narrada em primeira pessoa tanto por Genly Ai quanto por Estraven, o que dá a oportunidade ao leitor de entrever os dois pontos de vista. Além das narrativas, há também relatórios elaborados por Genly Ai. Independente da voz narrativa, a prosa de Le Guin é concisa mas, ao mesmo tempo, bastante poética. O texto combina força e elegância, numa fluidez que conduz o leitor através da história de forma impecável. Mesmo as digressões dos personagens são bem-vindas, acrescentando nuances à trama que, por si só, já é repleta de camadas.

“‘Ímpeto e medo, bons servos, maus senhores.’ Ele faz do medo um servo. Eu teria deixado o medo me conduzir ao caminho mais longo. A coragem e a razão estão do lado dele. De que adianta buscar o caminho mais seguro, numa viagem como esta? Há caminhos insensatos, que não tomarei; mas não há caminho seguro.”
(p.221)

Vale a leitura não só pelo texto primoroso de Le Guin, mas principalmente pela reflexão que provoca.

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Cristine Tellier
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