Meia-noite e vinte
Daniel Galera

Em meio a uma onda de calor devastadora e a uma greve de ônibus que paralisa a cidade, três amigos se reencontram em Porto Alegre. No final dos anos 1990, eles haviam incendiado a internet com o Orangotango, um fanzine digital que se tornou cultuado em todo o Brasil. Agora, quase duas décadas depois, a morte do quarto integrante do grupo vai reaproximar Aurora, cientista e pesquisadora vivendo uma pequena guerra acadêmica, Antero, artista de vanguarda convertido em publicitário, e Emiliano, jornalista que tem uma difícil tarefa pela frente.
(fonte: companhiadasletras.com.br)

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Como eu já havia constatado ao ler Barba ensopada de sangue, Daniel Galera é um bom contador de causos, sabe como laçar e enlaçar o leitor com sua narrativa. Apesar de narrado em primeira pessoa pelos três amigos “sobreviventes”, com cada voz narrativa perceptivelmente diferente das demais, há uma unicidade motivada não só pelo passado em comum e o tom saudosista que todos adotam, mas também pelo fato de cada um deles estar mergulhado – ou mergulhando – em situações-limite, seja na vida profissional, seja na pessoal, ou ambas.

“Não era a primeira vez que me viam irado. Com outras pessoas, em momentos como aquele eu me sentia como uma fera enjaulada que não ganharia comida se não se acalmasse. Com eles, e com Duque, era diferente. Eu os sentia na jaula comigo, respondendo ao meu estado em vez de simplesmente reagindo do outro lado de uma barreira. Próximos. Do lado de dentro.”
(p.53)

Enquanto em Barba ensopada de sangue, apesar das digressões longas e das notas de rodapé gigantescas, a narrativa deixa o leitor imerso no universo do personagem, sem querer sair; neste, mesmo o autor amarrando habilmente o presente com os flashbacks sem deixar pontas soltas, há trechos em que se tem a impressão de que a narrativa não avança. Para leitores habituados a novelas – o gênero literário, não as produções globais – pode parecer que a história não evoluiu, já que pouco ou quase nada acontece. Pergunto-me se isso talvez tenha sido proposital. Causar no leitor o mesmo marasmo e falta de perspectiva dos personagens. Mas vale reparar que as reflexões de cada um dos narradores têm um peso muito maior que a trama em si. Os eventos “externos” são gatilhos para os flashbacks que, por sua vez, desencadeiam as digressões dos personagens, repletas de dúvidas sobre o passado e questionamentos sobre o presente.

“Toda infestação de organismos tinha capacidade de causar terror no coração dos humanos. Qualquer organismo. (…) Não havia por que ser diferente com humanos. Tínhamos infestado o planeta, ou pelo menos, as ruas de São Paulo. Uma das características de um organismo, filosoficamente falando, era a dele ser dotado de alguma espécie de interesse próprio, e era a concentração elevada desses interesses próprios que tornava a multidão um ambiente nauseante. (…) A proliferação humana já era uma coisa constrangedora para a humanidade, eu pensava. A espécie inteira parecia fadada a conquistar um Darwin Award em escala cósmica, pela proeza de alcançar a autoextinção por meio da melhoria da expectativa de vida.”
(p.116)

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Daniel Galera

Como tantos outros romances de autores contemporâneos, os personagens circulam em um ambiente povoado de jornalistas, acadêmicos, escritores. Não é uma justificativa, mas é relevante que Galera tenha tido como inspiração alguns eventos pessoais – por exemplo, o fanzine criado pelos personagens. Sendo assim, natural que o universo do livro seja de certa forma semelhante ao vivenciado pelo autor. É mais uma bolha “intelectual”, do que um microcosmos.

Seria fácil descambar para o drama, devido à situação em que cada personagem se encontra. Seria fácil também escorregar para a auto-ajuda, com “mensagens” motivacionais disfarçadas de lirismo. Mas Galera não faz isso. Ele enfatiza a intangibilidade da nossa existência. Nâo há soluções prontas. Aliás, não necessariamente há soluções. Mas, mesmo assim, a vida segue. Assim como o desfecho que parece sugerir ao leitor um novo começo.

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Cristine Tellier
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