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O adulto
Gillian Flynn

Uma jovem ganha a vida praticando pequenas fraudes. Seu principal talento é a capacidade de dizer às pessoas exatamente o que elas querem ouvir, e sua mais recente ocupação consiste em se passar por vidente, oferecendo o serviço de leitura de aura para donas de casa ricas e tristes.
Certo dia, ela atende Susan Burkes, que se mudou há pouco tempo para a cidade com o marido, o filho pequeno e o enteado adolescente. Experiente observadora do comportamento humano, a falsa sensitiva logo enxerga em Susan uma mulher desesperada por injetar um pouco de emoção em sua vida monótona e planeja tirar vantagem da situação.
(fonte: quarta capa do livro)

Por que ler este livro? Ou melhor, por que eu o li?

O-adulto-capaPorque é de Gillian Flynn. Salvo raras exceções, qualquer pessoa que tenha lido Garota exemplar quer ler mais livros da autora.
Porque foi escrito a pedido de George R.R. Martin, para fazer parte de uma coletânea de histórias – O Príncipe de Westeros e outras histórias. E, se pediu, ele certamente, assim como nós pobres mortais, leu algum texto da autora e viu algo de valor ali.
Porque a sinopse é interessante. Vigaristas são sempre protagonistas cativantes.
E, finalmente, porque tem uma abertura que chama muito a atenção e faz o leitor querer saber mais:

“I didn’t stop giving hand jobs because I wasn’t good at it. I stopped giving hand jobs because I was the best at it.”
(“Eu não parei de bater punheta para os outros por não ser boa. Parei de bater punheta por ser a melhor.”)

Como já aconteceu com outras leituras, esta resenha não foi planejada. Eu não tinha intenção de escrever a respeito do livro, até ler algumas “resenhas” daquele tipo que me irritam justamente por não merecer serem chamadas de resenhas. Já falamos sobre isto no blog, mas resenha não é opinião. Se eu quisesse apenas ler a opinião dos leitores, saber quantos gostaram ou desgostaram, se o livro é grosso ou fino, se o papel é amarelinho, recorreria ao Skoob ou ao Goodreads não a blogs literários, onde se espera, no mínimo, que quem escreve justifique por qual (ou quais) motivos o livro é bom (ou não).

Mas reclamar não resolve nada, certo? Então, vamos à resenha.

Antes de mais nada, não é um conto. Conforme o Douglas já discorreu neste post, não basta ser um texto pouco extenso para ser um conto. Reparem que “Os mortos”, de James Joyce, é um conto mesmo com suas cento e poucas páginas. O texto de Joyce tem o necessário para ser um conto: unicidade narrativa. Ou seja, além de a trama se desenrolar ao redor de um único ponto de ação, mantém-se a unicidade temporal e espacial. Algo que não ocorre com a história de Flynn, que pode ser melhor encaixada na categoria de “novela” – e, por sua extensão, ser chamada de “noveleta”. Mas isso não é demérito algum. É apenas uma observação que ajuda a melhor analisar a obra.

A trama tem um pezinho no sobrenatural, algo pouco habitual nos livros de Flynn. Porém, a autora explora bem essa faceta, com a dose de suspense necessária que (quase) assusta o leitor mas o deixa curioso o bastante para não abandonar a leitura. Há referência mais evidente às clássicas histórias de terror do que um casarão com “problemas” que influenciam negativamente os moradores?

Como sempre, a autora demonstra sua habilidade em escrever personagens femininas. A protagonista tem uma força, uma intensidade que cativam o leitor rapidamente (sem contar a impressionante frase de abertura). E mais uma vez, a narrativa em primeira pessoa, que Flynn domina muito bem, deixa o leitor em desvantagem, tendo como referencial apenas o ponto de vista da protagonista. Narradores não confiáveis são um recurso narrativo sempre muito eficiente. A personagem está muito bem construída e sua “transformação”, de punheteira a vidente, é de uma perspicácia ímpar. Já que desde o início da história fica clara sua habilidade em “ler” as pessoas, é quase uma evolução natural ela passar a ler a sorte dessas pessoas.

Não chega a ser um spoiler, mas leitores mais atentos devem perceber que justamente essa habilidade será parte essencial no ponto de virada da história. E nisso reside um dos problemas da trama. Antever o plot twist é bem decepcionante. Quem leu outros livros da autora com certeza pressente sua aproximação. E antes que ele ocorra, percebe-se que (assim como nos memes) “há algo errado que não está certo”. Em vez de ser algo bombástico como em Garota exemplar – em que o leitor para, abaixa o livro e fica alguns segundos pensando e repetindo para si “PQP! PQP! PQP! Como ela fez isso?!” – neste, o efeito é mais “morno”. Ele existe, sim, sem dúvida. Porém está mais para “Ah! É isso? OK, entendi.”. É difícil detalhar mais sem dar spoilers – algo que, num texto curto assim, seria uma sacanagem desnecessária com quem ainda não leu.

Há uma orientação na escrita de roteiros batizada de Arma de Chekov, justamente por se referir à afirmação do escritor Anton Chekhov de que: “Não se deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém está pensando em dispará-lo.” Estudioso da estrutura de contos e de narrativas curtas em geral, Chekov reforça o conceito de que detalhes que não influenciam na trama são totalmente desnecessários e dispensáveis, ou seja, podem ser cortados. E, num raciocínio inverso, se há algo que aparece na história e que parece ser supérfluo, possivelmente em algum ponto será importante para o desenlace da história. Como o martelinho de geólogo de Dufresne, no filme The Shawshank Redemption. Neste livro, o pivô do que acontece no ponto de virada tem mais destaque do que deveria, quase estragando a revelação. O efeito “pista e recompensa” fica enfraquecido.

Gillian Flynn
Gillian Flynn
O final deixa um pouco a desejar. Se, em um conto, o clímax – seja uma reviravolta ou uma epifania do personagem – praticamente se alinha ao final do texto, nos demais gêneros faz-se necessário um desfecho, algo que dê ao leitor a sensação de conclusão (mesmo que eventualmente se deixe um “rabicho” que permita continuar s história). Neste livro, a autora parece ter gasto toda sua energia em conduzir o leitor para o ponto de virada e pouco restou para desenvolver o final. É um tanto apressado e não muito satisfatório (quem leu Garota exemplar e não gostou do final, vai se identificar com essa sensação). Talvez a autora não tenha tido tempo hábil ou espaço suficiente (em caracteres) para desenvolver melhor o desenlace. Ou talvez apenas estivesse cansada. De qualquer forma, o final fica aquém do restante da obra.

Enfim, leitores de “primeira viagem”, com certeza se verão imersos na trama, sendo surpreendidos com o ponto de virada. Justamente por não terem o background das leituras anteriores, a surpresa será mais eficiente. É inegável que aquela sensação de ter sido enganado pela autora é, ao mesmo tempo, intrigante e prazerosa. E quem nunca leu Flynn vai experimentar isso intensamente.

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Cristine Tellier
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