Barba ensopada de sangue
Daniel Galera
Nunca havia lido nada escrito pelo Daniel Galera, apesar de já ter ouvido/lido algo a seu respeito. Lembro de ter ouvido comentários em algum podcast (ou videocast) sobre a publicação de estreia da Companhia das Letras no mundo das HQs: Cachalote, com texto de Galera e desenhos de Rafael Coutinho. Embalada pela polêmica na escolha dos autores presentes na Granta vol.9 – coletânea reunindo “os melhores jovens escritores brasileiros”, conforme escolha da própria revista – resolvi lê-la. E o texto de Galera foi um dos poucos ali que me impressionaram positivamente. O texto incluso na coletânea era justamente um trecho deste romance.
Sinopse:
Neste quarto romance de Daniel Galera, um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista (cujo nome não conhecemos) se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores.
Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, o professor estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. Aos poucos, ele vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história.
(fonte: Companhia das Letras)
O texto de Galera é incomum. Não dá aquela urgência de avançar rápido na leitura para descobrir a solução de algum mistério ou ficar logo sabendo o desfecho da estória. Contudo, ao mesmo o tempo, tem o poder de prender o leitor, conduzindo-o de tal modo que a leitura prossegue num ritmo constante, incansável e difícil de interromper. Tão fluida e tão cativante quanto aquelas conversas de fim de noite com um amigo de longa data que se prolongam até o momento da partida – ou do término do livro. Já havia notado isso ao ler o trecho publicado na Granta. E foi muito gratificante perceber que não apenas aquele trecho – que era um causo contado pelo pai do personagem – mas todo o livro seguia nessa toada.
Se há “barrigas” na narrativa, principalmente no segundo terço do livro, certamente são os trechos em que o protagonista conversa sobre budismo com Bonobo, um rapaz da cidade, ou então quando perceptivelmente o diálogo dos personagens está ali apenas e tão somente para o autor expressar seu próprio pensamento. Nesses pontos, é grande a tentação de largar o livro e ir fazer outra coisa ou de pular o trecho em questão. Em contrapartida, há alguns trechos cuja função narrativa é questionável – não desenvolvem a estória ou os personagens. Mas mesmo gratuitos, esses trechos têm sua beleza e, apesar de desconectados do restante da trama, cativam o leitor. É de se pensar se sua inclusão não é proposital, a fim de enfatizar a descontinuidade dos eventos e o despreendimento do protagonista.
Diferente de vários outros livros contemporâneos, que ambientam a história em cidades fictícias ou estilizadas, certamente pela liberdade que isso acarreta, a Garopaba descrita por Galera é tão próxima e real que fica fácil para o leitor identificar-se com o protagonista e sentir-se, assim como ele, um forasteiro. Um estranho que chega à cidade, que se instala ali sem motivo aparente, que começa a fazer perguntas sobre um passado que a maioria dos moradores prefere não recordar, com uma condição neurológica que dificulta a socialização. Pode parecer, num primeiro momento, apenas uma muleta narrativa. Mas o autor explora a ideia do “estranho no ninho” com engenhosidade na maior parte do texto.
“O rapaz não diz nada e apenas o encara. É uma reação comum por essas bandas. As pessoas às vezes parecem espantadas por terem sido abordadas, como se dirigir a palavra aalguém fosse a coisa mais insólita que pudesse acontecer.” (p.171)
Devido à condição neurológica do protagonista, há muitos trechos descritivos no decorrer da narrativa. Contudo, ao contrário de algumas outras obras, isso não torna o texto cansativo, apesar de as descrições serem extensas e bastante detalhadas. Também devido à condição neurológica do personagem, as descrições não são apenas “visuais”, mas englobam os demais sentidos – tato, olfato, audição e, até mesmo, sabor. E é esse mix de sensações que envolve o leitor, imergindo-o no universo do personagem, impedindo que a narrativa se torne enfadonha e modorrenta.
“Desperta sem abrir os olhos. Há o calor, o cheiro. E uma memória nítida de todas aquelas coisas que prescindem ãao apenas de um rosto mas da própria visão. O peso é uma de suas sensações favoritas. Ele a identificaria no ato. Se ela deitasse sobre ele amanhã cedo ou daqui a um ano, tanto faz. E a maneira como um corpo se move. Se está em contato íntimo com o seu, se puder segurá-lo com firmeza usando as duas mãos nos diversos pontos em que se articula e ler dessa forma os seus movimentos voluntários e involuntários, suaves e bruscos, repetidos ou não, poderá reter para sempre uma imagem tátil que lhe dirá bem mais que qualquer estímulo visual sobre como esta pessoa se encolhe e se solta, como pede e recusa, como se aproxima e se afasta.” (p.81)
Há um detalhe curioso na diagramação do livro. A estória se passa nos tempos atuais. Sendo assim há, no texto, referências a email, sms, redes sociais, entre outras modernices. O interessante é que alguns deles – recados na caixa postal do celular, ligações, mensagens no Facebook – são inseridos como notas de rodapé, por vezes ocupando quase a página toda. Não são essenciais, mas complementam as informações que o leitor tem, auxiliando na construção do personagem, deixando entrever seu passado, sua personalidade, suas motivações, seus relacionamentos.
Algo que talvez incomode os mais afeitos às convenções da escrita é a total ausência não só de travessões – indicando diálogos, a troca dos “falantes” ou a alternância entre pensamento e fala – mas também, vez ou outra, de alguns sinais de pontuação. No início da leitura, pode até parecer falha de impressão. Porém, lidas as primeiras páginas, percebe-se que é intencional. Para os leitores acostumados a Saramago, não é novidade. Para outros, talvez cause um certo desconforto inicial, mas que a prosa cadenciada, quase musical faz desaparecer assim que o ritmo da leitura se estabalece.
Sobre a parte “física” do livro, o tratamento dado pela Companhia das Letras merece elogios. As três opções de cores de capas – azul, verde ou vermelho (a minha) – além da textura ligeiramente emborrachada dão um acabamento diferenciado. Impressão em papel pólen e nenhum erro perceptível de revisão contribuem para uma leitura bastante confortável.
Há algo de artesanal no texto de Galera, tanto do ponto de vista estilístico quando no desenvolvimento da trama. E é isso que conquista o leitor. E é o que transforma a estória aparentemente banal, em que os clichês seriam inevitáveis – e estão presentes -, numa viagem literária inesperada.
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Boa demais essa crítica. Seus comentários me deixam com mais vontade ainda de conhecer essa “Barba ensopada de sangue”.
Obrigada, Nanete 🙂
Leia sim, pois a “viagem” vale muito a pena.
Abs e boas leituras.