Kindred
Octavia E. Butler

“Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça. Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida… até acontecer de novo. E de novo. Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado.”
(fonte: 4a. capa do livro)

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A maioria dos leitores – eu, inclusive – ao ver um livro na categoria “ficção científica” logo pensa em uma história repleta de gadgets ainda não existentes, uso de tecnologia super avançada, viagens espaciais, seres extraterrestres, entre outras coisas. E, conforme a capa de Kindred, se a autora é a dama ficção científica, o livro certamente pertence a esse gênero. Mas, ao ler a sinopse, o leitor desavisado sente seu cérebro “bugar”, já que nenhum daqueles elementos que habitualmente povoam tramas de ficção científica parece estar presente. Mas essa impressão logo passa. Pois há um elemento, exaustivamente explorado tanto na literatura quanto no cinema, que garante que a classificação da obra está correta: a viagem no tempo.

Contudo, o leitor não deve esperar que a obra seja o que convecionou-se chamar de hard sci-fi, ou seja, ficção científica repleta de tecnicidades que explicam, corroboram e dão verossimilhança às “invenções” que recheiam a trama. Kindred é light sci-fi, usa um elemento de ficção científica, sem preocupação alguma em dar-lhe embasamento científico à luz da tecnologia atual. Neste livro, a viagem no tempo é uma ferramenta a serviço da trama, não importando explicar como ocorre, cientificamente falando. A protagonista viaja no tempo, ponto. Ao leitor, basta comprar a ideia e deleitar-se com a prosa ágil e concisa de Butler.

Há quem diga que a primeira frase de um livro é a responsável por convencer (ou não) o leitor a continuar a leitura. Neste, não há como não querer saber o que houve com Dana, depois de ler isto:

“Perdi um braço na minha última volta pra casa. Meu braço esquerdo.”
(p.17)

E o prólogo prossegue de modo enigmático, praticamente intimando o leitor a tentar desvendar o que está ocorrendo:

“E perdi aproximadamente um ano da minha vida e grande parte do conforto e da segurança que só valorizei depois que deixei de tê-los. Quando a polícia libertou Kevin, ele foi ao hospital e ficou comigo para que eu soubesse que não o havia perdido também. ”
(p.17)

É em sua segunda viagem que Dana consegue entender em que época ela “aterrisa”. Ela sai de 1976 e vai parar – nessa segunda vez – em 1815, na casa de Rufus, em uma fazenda cuja força de trabalho é exclusivamente de mão de obra escrava. Não se pode dizer que Dana e Kevin, em 1976, sejam um casal super bem sucedido. Mas ambos estão empregados, têm onde morar, tiveram oportunidade de estudo. O orçamento é apertado, mas eles sobrevivem e vivem bem. O que Dana encontra em suas viagens é a subserviência, o medo, a humilhação, a exaustão da existência de um escravo. E, pior, de uma mulher escrava.

À luz de sua existência em 1976, o status quo do início do século XIX parece-lhe excessivamente opressor, cruel, inumano. Em uma sociedade em que a vida de um escravo não tem valor, além do monetário, em que sua integridade física está sob ameaça constante, ela aprende a ocultar sua postura de “mulher moderna”, fazendo-se passar por escrava, tolhendo sua personalidade, seus impulsos e evitando exibir conhecimento. E passa a entender as covardias, as cumplicidades, os compromissos e a inexorável fragilidade da comunidade escrava.

Todos os personagens são bem construídos, tridimensionais e muito, muito verossímeis. Todo personagem tem um passado, que corrobora sua personalidade, que baliza seu sistema de valores, seus desejos, seua medos, suas conquistas. Felizmente, Butler, não aderiu aos estereótipos habituais de brancos, negros, escravos, homens livres. Nenhum deles é 100% bom ou mau. As nuances estão presentes em suas atitudes, no uso de suas aptidões, no relacionamento com os demais. Não há como não se interessar pelo destino, não apenas da protagonista, mas de todos os personagens, mesmo os mais odiáveis.

Vale reparar como Dana e Kevin encaram a situação no passado de forma bastante diferente. Kevin, afinal, é homem, branco, hetero. Só consegue pensar em expandir a “aventura” em direção ao Velho Oeste. E a observação de Dana deixa bem clara a divergência na percepção que cada um tem dos eventos:

– Esta época poderia ser ótima de se viver. – disse Kevin, certa vez. – Fico pensando que seria uma grande experiência permanecermos nela… irmos para o Oeste, para vermos a construção do país, ver quanto da mitologia do Velho Oeste é verdade.
– No Oeste – digo com amargura – é onde fazem com os indígenas o que fazem aqui com os negros”
(p.157)

Publicado em 1979, continua atual ao abordar preconceito e violência contra negros e mulheres de forma tão crua. Se você, leitor, curte ficção científica, leia. Se não curte, leia também. A reflexão que o texto gera é imprescindível.


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Sobre a autora:
800px-Butler_signingEscritora afro-americana consagrada por seus livros de ficção científica feminista e por inserir a questão do preconceito e do racismo em suas histórias.
Octavia Butler decidiu tornar-se escritora aos doze anos ao assistir o filme Devil Girl from Mars e convencendo-se de que poderia escrever uma história melhor. Depois de vender algumas histórias para antologias, adquiriu notoriedade a partir dos anos 1980, ganhando os prêmios Nebula e Hugo. Mas foi a publicação dos livros Parable of the Sower (1993) e Parable of the Talents (1998) que solidificou sua fama como escritora. Em 2005, ela foi admitida no Hall Internacional da Fama de Escritores Negros.
Após sua morte, em 2006, uma bolsa de estudos que leva seu nome foi criada para incentivar estudantes negros inscritos nas oficinas de escrita onde Butler foi aluna e, mais tarde, professora.
(fonte: Wikipedia)


Cristine Tellier
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