As meninas
Lygia Fagundes Telles

Nós, homens, temos muitas dificuldades para entender o feminismo. E não digo isso num tom indulgente, como se fosse algo perdoável. Eu mesmo, policiando e revendo minhas atitudes, constantemente cometo e reverbero esse comportamento execrável. Mesmo sem intenção ou sem perceber. Todavia, depois de evoluir em alguns aspectos, posso dizer que, ao longo da vida, tive percepções que hoje me fazem ver com mais clareza a gravidade do assunto.

É muito confortável estar no topo. Quando se está numa posição de vantagem, as dificuldades alheias parecem bem mais amenas e bem menos relevantes. Para quem é homem e nunca viveu na pele de uma mulher, é tremendamente fácil julgar o feminismo como lamúria. Afinal, pelos últimos cem mil anos de existência do Homo sapiens, vivemos, na grande maioria das organizações sociais, um patriarcado. Isso quer dizer que os machos ditaram as regras, criaram um mundo de homens para homens. Logo, qualquer coisa que não ofenda diretamente a um homem é “mimimi”.

As mulheres, até hoje muitas vezes consideradas coadjuvantes, apanharam, foram submetidas a humilhações, estupradas, vendidas, tratadas como mercadoria, como escravas domésticas, como animais de reprodução, culpadas por falhas de caráter dos homens, tiveram de lutar e, principalmente, trabalhar muito para coexistir.

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Reprodução/ Eduardo Galeano

Um homem não é capaz de imaginar como é ser assediado de maneira vulgar todo o santo dia. Não tem ideia do que é ser considerado promíscuo por ir pra cama com muitos parceiros (aliás, no mundo masculino, isso é um mérito). Não é julgado como culpado por ser estuprado. Não sente o desprezo ao falar numa reunião de negócios meramente por não ter um pênis. E quando ergue a voz para exigir igualdade, não é ridicularizado. Sem passar por nada disso, como poderiam entender?

Podendo. A burrice não é não conhecer. É conhecer, mas ignorar. A massiva maioria de nós, homens já adultos, foi criada segundo os mesmos paradigmas do patriarcado. Há pouquíssimo tempo este era o status quo, um ciclo vicioso. Mas os tempos mudaram, graças a mulheres que derramaram vagalhões de sangue para trazer à tona o feminismo e a necessidade urgente de mudança. Então, agora não há mais desculpa. O machismo não é mais um crime velado, mas tremendamente escancarado que, se tivéssemos vergonha na cara, tornar-ser-ia hediondo.

A cultura atual endossa o que estou falando (e talvez por isso os governantes conservadores sejam tão contra investimento em cultura). Não obstante tardio, nunca o empoderamento feminino recebeu um destaque tão grande nas difusões populares. Filmes, séries, literatura, quadrinhos… Parece que, devagar, estamos trazendo à tona uma verdade oculta que por eras foi escondida à base da força.

Este caminho foi sendo entalhado ao longos dos anos e podemos destacar inúmeras obras que são marcos. Mas uma das minhas favoritas é, recentemente, o livro As Meninas, de Lygia Fagundes Telles.

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Eu já tinha ouvido falar deste livro por Cristine, numa referência ao erotismo subjetivo (subjetivo para nós homens cuja percepção erótica é limitada) na cena do pêssego. E namorava a ideia de lê-lo com certo receio: autoras mulheres me intimidam. Assim como Clarice Lispector, Lygia cose sua prosa com uma tessitura poética muito aguda. O que obriga a leitura não fluida e rápida, mas sim com apreciação e deleite de quem saboreia uma sobremesa rara.

A narrativa fala de três amigas, Lorena, Lia e Ana Clara. Personalidades tão distintas e conflituosas que, mesmo assim, necessitam estar juntas. Fiz uma analogia à psique humana, segundo Freud, dividida em três níveis: id, ego e superego. Cada qual com seu temperamento, objetivos, sonhos, etc.

Recém entradas na vida adulta, elas têm de lidar com as vicissitudes de sobreviver à voracidade do mundo, em plenos anos sessenta, tempo em que o conflito entre conservadorismo e liberdade está em seu auge. Cada qual dentro dos paradigmas e bagagens de suas vidas.

Lorena, a moça rica, sonhadora, romântica e suave, cheia de crendices e superstições. Lia, a intelectual revolucionária, militante, com ânsias de mudar os paradigmas retrógrados do mundo, preferencialmente à força. E Ana Clara, de origem pobre e de um núcleo familiar destroçado, que encontra alívio nas drogas e sonha em engendrar alguma jogada na vida e ficar rica.

O livro põe em voga conceitos e preconceitos, temática ainda tão vívida hoje, inseridos no mundo das meninas. Expõe como é a visão feminina do mundo, a ótica de uma mulher sobre assuntos como sexo, assédio, casamento, família, trabalho, etc. Uma aula sobre pontos de vista alheios que deveria ser obrigatória para todos os homens.

Mas apesar desta minha interpretação, o livro não é panfletário. Não faz apologia direta ao movimento feminista. Porém, como eu mesmo disse na resenha de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, expor essas questões reais já é um manifesto bastante contundente sobre feminismo.

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Lygia Fagundes Telles
Lygia deixa a narração à cargo das meninas, brincando com os contrastes de ponto de vista e interpretação. O drama de uma é amenidades para a outra, e ficam as três disputando, parece, o protagonismo da obra, como nós, pessoas reais, fazemos na vida e no cotidiano. E é incrível como o leitor é capaz de reconhecer quem está falando através do estilo de cada personagem. Uma técnica assaz complexa, diga-se de passagem, que Lygia dominou com incrível naturalidade.

Mesmo sendo um clássico da literatura brasileira, é uma prosa, como já citei, enraizada na poesia, foge dos rigores estilísticos comuns nos demais títulos cânones nacionais. Para a época, deve ter sido extremamente moderno e jovial, paradoxalmente à grande densidade de seu conteúdo.

Os arcos narrativos das personagens se fecham, não exatamente de forma surpreendente. Não que seja previsível, mas é, como todo romance, uma foto do mundo real. Não há finais felizes ou finais dramáticos. Apenas finais (quando digo romance, não é novela – existe uma diferença: dê uma olhada aqui e aqui, se quiser saber sobre isso).

No atual cenário brasileiro, onde questões tão bem resolvidas do passado estão voltando a ser negativamente discutidas, este é um livro muitíssimo importante. A arte deve, dentre toda a sua infinidade de funções, informar. E As Meninas não é apenas uma obra de magnífico nível artístico como também uma carta aberta sobre a vida das mulheres que todo homem deveria conhecer.

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