O viajante imóvel
Júlio Ricardo da Rosa

Mesmo com dificuldades para se locomover em sua cadeira de rodas, Vítor Assis vive plenamente – senão no cotidiano, ao menos na imaginação. É que Vítor, um escritor e tradutor, incorpora Félix Kölderlin, um viajante famoso por seus relatos de aventuras em lugares exóticos e pouco explorados. Em meio a essa dupla existência está Marília, ex-mulher com quem o protagonista mantém uma estranha e doentia relação, e Turco, um sujeito que lhe encomenda constantes trabalhos. O passado, na forma da doce Ester e das lembranças dos tempos da universidade, também assombra Vítor.
(fonte: dublinense.com.br)

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O livro se inicia com um relato de Félix, contando sua experiência ao conviver com os tuaregues. Um parênteses aqui. Diferente do que o autor afirma eles não se definem como “esquecidos por deus”, significado de tuaregues, esse é o modo como os outros povos os chamam. Eles se referem a si próprios – e o autor utiliza o termo repetidas vezes – como “os livres”, significado de imouhar. Continuando, o leitor é levado a crer que o livro que tem em mãos é uma coletânea de relatos de viagem. Só que não.

No capítulo seguinte, somos apresentados a Vítor, um paraplégico que trabalha fazendo traduções quase que exclusivamente para um único cliente, o Turco. Vítor mora sozinho, de favor, num apartamento mantido por uma mulher – que mais tarde descobrimos ser sua ex-esposa, Marília -, já que seus ganhos como tradutor não são suficientes para sustentá-lo.

Intercalando relatos de viagem e flashbacks contando como tudo se passou até Vítor chegar a esse ponto de sua vida, o autor conduz o leitor entre duas realidades. Duas vidas. Distintas, inicialmente. Mas que, aos poucos, percebe-se serem complementares, quase indissociáveis. Recurso utilizado inúmeras vezes na literatura – José Saramago, Philip K. Dick, Allan Poe, Machado de Assis são alguns exemplos – a eterna presença do duplo é inserida aqui de forma bastante criativa. A segunda identidade de Vítor, ou segunda personalidade, é criada e construída com base em sua necessidade de se livrar de suas limitações físicas, mesmo que o próprio personagem não admita isso. Além disso, o autor brinca com o conceito da escrita em si, da contação de histórias. Fala do poder que o escritor tem de usar a mentira a seu favor, já que tudo que ele escreve não passa de um grande faz-de-conta.

“Talvez seja essa a verdadeira mágica da escrita: a mentira. Nenhum relato é verdadeiro. Nem mesmo os livros de memórias, resultado de lembranças deformadas. Todos mentem. Todos imaginam. Por isso não me considero um traidor ou um farsante. Duvido que os verdadeiros viajantes não sejam traídos pelas recordações ou desconfiem de suas próprias notas.”
(p.33)

Certamente de forma proposital, a fim de fornecer um contraponto à narrativa vibrante e aventurosa de Félix, tanto a prosa quanto à própria narrativa da história de Vítor são “mornas”. As construções são medíocres (não no sentido pejorativo), não há arroubos estilísticos. E os eventos, em linhas gerais, se sucedem de forma trivial, quase previsível, assumindo em vários momentos um viés folhetinesco talvez indesejado. Em contrapartida, os relatos das aventuras de Félix são sempre instigantes, repletos de detalhes que juntam o prazer da viagem a uma certa dose de perigo. São escritos numa prosa que mescla o tom de reportagem com um lirismo que envolve o leitor e deixa aquele gostinho de “quero mais”.

Com exceção de alguns errinhos de revisão, a edição é primorosa. A capa com alto-relevo, a escolha das cores dão um aspecto ótimo. A textura do papel do miolo, assim como a coloração também foram boas escolhas.

Para quem curte relatos de viagens, é uma boa opção. Para quem quer alguns sugestões de filmes também, já que o personagem é um cinéfilo também. Vale também para quem gosta de refletir sobre o papel do escritor e sobre a linha tênua entre ficção e realidade. E mesmo que o leitor não se veja em nenhum desses “quadrados”, histórias bem contadas sempre valem a pena.

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Cristine Tellier
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