ghost rider

A Estrada da Cura
Neil Peart

Então a vida vem e lhe dá aquele tapa estalado. Esculpe em você o sentimento ambíguo de matar a si mesmo ou alguém. Qualquer coisa que o afaste daquela situação terrivelmente insolúvel. Acontece nas melhores famílias. O sentimento de solidão se acomoda imediatamente e faz você se sentir uma criança perdida num enorme supermercado.

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As palavras de conforto vêm e dizem o que você já sabe. O que você disse para outrém quando era apenas um espectador e não um protagonista da agonia. E soam todas tão óbvias quanto vazias e ineficazes. “Vai passar…”, “As coisas são assim mesmo…”.

Acontece que tudo o que você vê, ouve, toca, saboreia se torna um lembrete daquilo. Como naquele dia em que está com o pé machucado e o mundo inteiro parece desenvolver um gosto especial por pisá-lo. Assim me veio à mão A Estrada da Cura, de Neil Peart: com a sensação de que o destino se inspirou no que eu sentia para me indicar a leitura mais adequada.

O título soa como um livro de autoajuda, mas não é. Ou é, considerando que, assim como já disse outras vezes, todo e qualquer livro tem um Q de autoajuda. Você lê, absorve, aprende ou desaprende algo. Para mim, ao menos, foi incrivelmente terapêutico.

neil peartEm suma, Estrada da Cura é o relato da viagem feita por Neil Peart (baterista do Rush, a título de curiosidade), após a terrível tragédia que assolou sua vida – perdeu a filha de 22 anos e, um ano depois, a esposa que se entregou, digamos, para um câncer, após o acidente da menina. Tentando manter-se à frente da dor que o perseguia e consumia, Peart pegou sua moto e percorreu sozinho 90.000 quilômetros entre Canadá, EUA e México.

Como não tenho hábito de ler orelhas, sinopses ou quaisquer fazedores de spoilers antes de iniciar uma leitura, eu estava esperando uma chatice de descrições de lugares, estradas, comentários sobre motos, etc. Foi, contudo, uma tremenda surpresa o fato de o baterista do Rush ser um leitor tão voraz e de gosto muito refinado, bem como a terrível tragédia que o levou a compilar a obra.

O tom é melancólico do início ao fim (como ser diferente?) e ele usa de todo seu bom gosto literário para tecer o relato da viagem, entremeado de memórias felizes. As quais, depois do que houve em sua vida, tornaram-se um denso foco de dor e tristeza. Interessante isso, não? A felicidade de outrora tornou-se o fardo de hoje.

Peart mescla sua narrativa em três vozes: o relato principal, os trechos de seu diário pessoal e as cartas que escreveu para amigos durante a jornada. Nota-se um pequeno desequilíbrio na parte técnica neste ponto, mas não desabona em nada a qualidade do livro. Possivelmente só um chato como eu notaria isto. No mais, ele é muito bom. Mesmo.

neil peartAs figuras de linguagem que usa para descrever sentimentos, lugares e impressões são dignas de um grande autor. Ele ainda nos brinda com citações de escritores clássicos, fatos históricos sobre os lugares em que esteve e boas dicas sobre viagens e turismo como mochileiro. Evidências claras de um trabalho primoroso em pesquisa, em riqueza literária e em vivência de viagem.

Há algumas passagens que soam repetitivas. Afinal, é uma longa viagem de moto com dezenas e dezenas de paradas, hotéis, jantares, paisagens. Mas o autor segura bem a onda, falando sobre cada lugar o que precisa ser dito, sem se estender em trechos chatos e sem poupar palavras para os pontos mais instigantes.

Talvez tenha sido apenas o meu momento. Refleti a imagem dos meus problemas pessoais na figura triste de Peart, encontrando-me nele, compreendendo-o através desta identificação. Não sei. O ponto, contudo, é que o livro realmente me tocou e até me arrancou algumas lágrimas sinceras.
É tão triste que uma obra tão pitoresca tenha de surgir de uma história tão tétrica, não é? Penso ao menos que tenha valido como alavanca para que o autor superasse sua dor e, de quebra, nos deliciasse com uma leitura tão prazerosa e – por que não? – terapêutica.

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