Verão
J.M.Coetzee

Na década de 1970, depois de um período nos Estados Unidos, John Coetzee retorna à Áfria do Sul e se instala na Cidade do Cabo, em companhia do pai. Ele está nos seus trinta anos, e o país vive o auge do apartheid. Solteiro e sem emprego, o ainda obscuro escritor volta a travar contato com a família de origem africânder, que o vê como um fracassado, enquanto se envolve de forma canhestra e inábil com quatro mulheres, numa tentativa de restaurar sua relação com o mundo.
(fonte: quarta capa do livro)

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Essa é uma daquelas sinopses que parece ter sido escrita por alguém que não leu o livro. Ou, se leu, não prestou a devida atenção ao conteúdo. Dá a errônea impressão de que todos os relacionamentos com as mulheres – Julia, Margot, Adriana e Sophie – tinham um viés amoroso. Falha enormemente ao afirmar que há algo intencional no seu reencontro com a família. Além disso, não há qualquer tentativa de restaurar sua relação com o mundo, aliás sua relação com o mundo pouco ou nada importa para ele.

O livro foi tema do clube de leitura d’O Espanador, o “Leituras Compartilhadas” – eu, infelizmente, mais uma vez não consegui comparecer. E, no vídeo pós-encontro, Juliana e Kalebe comentaram que curiosamente, a forma de leitura divergiu. Alguns leram o livro como não-ficção, como uma autobiografia escrita com um estilo narrativo diferenciado. Outros o leram como uma ficção – eu fui por essa linha.

Aparentemente biográfico, destaca-se pela forma como a história de Coetzee é contada. “Aparentemente” porque exceto por alguns detalhes bem básicos – o nome, a nacionalidade, a profissão, os livros – todo o resto é ficcional (ou quase). Uma rápida pesquisa na Wikipedia desmente a maioria dos eventos. Talvez alguns outros tenham acontecido de forma diferente da contada ou serviram de inspiração para uma versão menos “fiel” da realidade. Mas inequivocamente, vários pensamentos e ideologias expressos são do Coetzee autor, não apenas do Coetzee personagem. É interessante investigar essa linha tênue entre o que é verdade e o que é ficção. Até que ponto o autor descontruiu o Coetzee autor para construiu o Coetzee personagem?

Porém, independente do que é ou não “de verdade”, vale destacar a forma como essas passagens da vida de Coetzee são contadas. Um biógrafo tenta reconstituir os anos que precederam o reconhecimento de Coetzee como escritor, que no livro já faleceu, e faz isso conversando pessoas que ele, o biográfo, julgou terem tido importância nesse período de formação. Há alguns trechos de cadernos de anotações do próprio Coetzee, assim como entrevistas com pessoas que conviveram com ele. Desse modo, a persona de Coetzee vai sendo construída a partir desses relatos.

rashomonA estrutura lembra bastante o filme Rashomon, de Akira Kurosawa, em que quatro pessoas contam suas próprias versões do mesmo acontecimento. Tanto num quanto no outro, o evento ou o personagem, são reconstruídos para o leitor/expectador através dos olhos de terceiros, o que de imediato coloca em dúvida a veracidade dos fatos. Não há narrador confiável. E coloca-se mais uma pulga atrás da orelha do leitor: na narrativa de cada um dos entrevistados, o que é verdade e o que é uma lembrança “floreada” – amenizada ou incrementada – do que realmente aconteceu?

Contudo, apesar da ambiguidade inerente à natureza dos relatos, mesmo sendo versões de períodos diversos da vida de Coetzee sendo visto por pessoas diferentes, há algo comum em todas as declarações dos entrevistados: a total falta de jeito de se relacionar com pessoas, especialmente com mulheres. Sua dificuldade – ou resistência ou falta de interesse – em demonstrar seus sentimentos é uma constante em todos os depoimentos.

“Eu fui importante para ele. Ele estava apaixonado por mim, do jeito dele. Mas existe um jeito importante de ser importante e um jeito sem importância, e eu tenho minhas dúvidas de que eu tenha sido importante num nível importante. Quer dizer, ele nunca escreveu a meu respeito. Nunca me pôs nos livros dele. O que para mim quer dizer que seu nunca cheguei a florescer inteiramente dentro dele, nunca ganhei vida mesmo.”
Julia – p.42

Outro fato comum a todos é o relacionamento de Coetzee com o pai, Jack. O convívio é compulsório, devido a uma questão de dependência financeira. Margot, uma das depoentes, prima de Coetzee, os descreve como adversários sujeitados a conviver por um longo período.

“O que mantém sua confiança em John perigosamente à tona é, estranhamente, o jeito como ele e o pai se comportam um com o outro: se não com afeição, o que talvez fosse dizer demais, ao menos com respeito.
Os dois costumavam ser os piores inimigos um do outro. A má vontade entre Jack e seu filho mais velho foi assunto de muito balançar de cabeça.”
Margot – p.138

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J.M. Coetzee

E não é apenas o estilo narrativo que pega o leitor de jeito e o impede de largar a leitura. O texto em si é construído de tal forma que não há desperdício. Não há parágrafo, frase ou mesmo palavra em excesso. A concisão é tanta, Coetzee tem um poder de síntese tamanho que lê-se algumas páginas e há tanta informação ali contida que a impressão é de se ter lido um compêndio. Há que se fazer algumas pausas para “digerir” o texto. Não por falta de entendimento, mas pela densidade do conteúdo.

O trunfo é esse jogo feito com o leitor. Esse jogo de perguntas e respostas – às vezes sem resposta – que se assemelha às entrevistas feitas pelo biógrafo de Coetzee no livro. E por ser um apanhado de anotações, sem ter um desfecho, uma conclusão, deixa no leitor a curiosidade por outras obras do autor, a fim de complementar essa imagem parcial que se formou durante a leitura.

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Cristine Tellier
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