Nota: Não entrarei em detalhes sobre a expressão “Show Don’t Tell” posto que já o fiz quando iniciei esta série no texto sobre reações.

É muito comum em cursos e oficinas que frequento, específicas sobre literatura, quem ministra usar filmes como exemplos para uma série de coisas. Eu mesmo, no post que introduziu esta série, usei o paradigma da atuação para elucidar o conceito.

Claro, de todos os nossos sentidos, a visão é possivelmente o sentido que capta o maior número de detalhes, logo é o que mais subjetividade absorve. Assim, uma cena de cinema pode ser muito mais potente para isso do que uma passagem de um livro, onde o escritor depende muito da imaginação do leitor.

Além disso, a literatura provém do teatro (Ahá! Aposto que você imaginava o contrário!) e o teatro – que depois evoluiu para o cinema – é essencialmente baseado em diálogo que, por sua vez, era usado para levar o espectador à trama e contextualizá-lo na história.

Tomando isso como base, podemos concluir que todo diálogo precisa necessariamente cumprir essa função: informar algo ao leitor.

Diálogos que não dizem nada de mais ocupam espaço à toa, comumente são chatos e, por vezes, confundem o leitor. Na minha opinião de chato radical, têm de ser cortados inexoravelmente.

Nota: é corriqueiro os concursos literários exigirem textos com pouca quantidade de palavras. Usar os diálogos corretamente pode ser de grande valia para economizar espaço.

show dont tell - diálogos

Mas cuidado! Usar diálogos para explicar as coisas precisa ser feito de forma hábil e subjetiva. Já peguei livros de autores “profiçionais” assim:

– Por favor, que horas são?
– Que bom que perguntou! São onze horas, o exato momento em que eu vou revelar meu plano diabólico de dominação mundial, de acordo com o alinhamento dos planeta blá blá blá…

Aí complica. A sutileza é fundamental. Precisa estar aderente ao contexto. Para mim, parece simples. Apenas me coloco na pele do personagem e vivencio a cena na cabeça (às vezes não apenas na cabeça e já fui flagrado gesticulando e falando sozinho).

Agora, dê uma analisada neste exemplo:

– Bom dia!
– Argh… Por favor, feche essa janela, quer me cegar?
– Há, há! Deixa-me adivinhar… Dor de cabeça? Boca seca?
– Acordou engraçada?
– E você atrasado… Hoje é segunda!
– Atrasado pra quê? – e sussurrou – Merda!

Simples, limpo, casual, comum. Mas observe melhor: quantas informações é possível tirar daqui?

  1. É dia.
  2. Faz sol.
  3. O personagem está com ressaca. O que indica que bebeu na noite anterior. E, pelo visto, bastante.
  4. Ele disse “engraçadA”, então sua interlocutora é do gênero feminino.
  5. Ela disse “atrasadO”, logo, a pessoa que acordou é do gênero masculino.
  6. É segunda e ele disse que não está atrasado e em seguida praguejou. Indica que, possivelmente, está desempregado e isso é uma coisa ruim.

Podemos ir mais além e dizer que, se o cara saiu para beber para afogar as mágoas do desemprego, possivelmente é alguém de caráter não muito forte. E a mulher, por ser bem humorada, considerando que seja sua esposa, namorada, etc., gosta dele e tenta segurar a onda… Enfim, dá para viajar bastante. Vai depender do que vier a seguir, do que mais o autor irá apresentar ao leitor. E, não sei vocês, mas tenho orgasmos mentais quando confirmo minhas suspeitas sobre essas pistas que vou pinçando durante a leitura.

Perceba o quanto foi possível poupar de texto, sem falar do clima, dos gêneros, do estado psicológico de cada um. Quanto melhor o escritor, mais informações ele consegue condensar de forma subjetiva e mais natural. Na literatura, menos é mais.

Bem, já que estamos aqui falando no diabo, não custa revisar algumas regrinhas sobre um bom diálogo:

Minha primeira é economia: você não costuma ver pessoas fazendo monólogos, dizendo de uma só tacada frases com mais de 15 palavras. A menos que esteja fazendo um discurso ou que seja alguém bem desagradável.

Minha segunda regra é que o diálogo precisa ser moldado pelos seguintes aspectos:

1) Perfil do personagem: um marginal vai usar gírias e dizer palavrões. Um matemático usará metáforas numéricas. Uma mulher depressiva terá digressões pessimistas em meio às falas. Um asmático vai usar frases curtas. Um egoísta ou narcisista dira “eu sou, eu faço” o tempo inteiro.

2) Situação emocional de quem fala ou do contexto: numa crise, ninguém fica dando explicações: então “Rápido! Pegue aquela corda! Com ela podemos laçar o galho daquela árvore e, trabalhando em equipe, puxaremo-nos para fora da areia movediça!” não serve. A menos que você esteja escrevendo um episódio da Dora, A Aventureira, que passa no canal infantil (eu conheço todos esses desenhos: 2 filhos).

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5 Replies to “Show, Don’t Tell – Diálogos”

  1. Ótimo artigo, assim como vários outros. Uma dúvida específica quanto aos diálogos: quais os livros ou artigos você indica para aperfeiçoar essa parte tão importante em qualquer trama?

    1. Oi Bruno! Obrigado pela visita!

      Existe uma infinidade de livros sobre esse assunto, mas há dois que eu gosto muito e aos quais eu sempre volto pra pegar algumas referêcnias:
      – O Foco Narrativo, de Ligia Chiappini Moraes Leite
      – Para Ler Como Um Escritor, de Francine Prose

      São tranquilos de ler e técnicos na medida certa.

      Espero que curta! Abraço!
      D.

  2. Procurei achando que fosse outra coisa, mas ajudou muito. Eu tenho evitado muitos diálogos pois nunca sei como configurar diálogos. Sempre acho que escrevo coisas demais e desnecessárias. Ou sem muito utilidade. Esse texto ajudou muito. Obrigada!!

  3. A porta rangia nervosamente,mesmo sendo empurrada com o máximo de cuidado. A escuridão que nos engolia através dela, não nos trazia nenhum conforto. O silêncio tornava tudo muito mais aterrador. Eu já não tinha tanta certeza de que era uma boa ideia. Súbito passos no corredor às costas. Ou será imaginação minha? O arrepio que sobe à nuca estremece meu corpo da cabeça aos pés. Certamente, não é um bom dia para sair da cama.

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