Hoje trabalho numa empresa em que o inglês é imprescindível. Saber inglês abriu essa porta para mim como o Silvio Santos abria as portas da esperança. Muitos elogiam minha pronúncia e perguntam quanto tempo estudei para chegar a esse nível e se surpreendem quando digo que nunca estudei a fundo. Pois vou confessar um ou dois truques: sou um grande imitador! Sempre que ouço uma frase em inglês em filmes ou música, a repito mentalmente e, quando surge o contexto, solto-a com a mesma flexão vocal, por isso minha pronúncia parece boa (volta e meia me viro para o meu filho e digo:Ícaro! I am your father!). Outra coisa: quando eu não sei ou não lembro de uma palavra específica, eu adapto mentalmente o que vou dizer, reformulando toda frase para poder usar os termos que sei. Dá muito mais trabalho, claro, mas é menos embaraçoso do que ficar no “hããã…”.

E o que isso tem a ver com clichês? Chegarei lá. Entenda, tudo que aprendemos e reproduzimos vem de algum lugar: “nada se cria, tudo se copia”. Nosso processo cognitivo é assim – “monkey see, monkey do”, dizem os americanos. Imitamos primeiro, para depois acrescentar nossas particularidades. Para um escritor, sobretudo, isso é um grande dilema, porque tendemos fortemente a copiar aquilo que lemos. E é algo muito natural, afinal é o que lemos que forma nosso pensamento e, por consequência, as histórias que criamos.

monkey see monkey do - o dilema dos clichês
(foto: http://time-az.com/)

Recebo alguns textos para revisar e os autores sempre se surpreendem quando peço para que tomem cuidado com os clichês. “mas eu não usei nenhum clichê!”, dizem. Mas usaram. Todos tendemos a fazê-lo, pelos motivos supracitados. Faz parte de nosso trabalho de escritores fugir deles desesperadamente. Este post surgiu para mostrar alguns truques que podem ajudar nisso.

Antes de tudo, vamos esclarecer algo que parece óbvio, mas que muitos escritores ainda não se deram conta: existe diferença entre clichê e chavão.

O chavão é aquela frase feita que todos conhecemos e usamos no dia a dia e, mesmo quando as palavras têm um sentido abstrato, sabemos de cara o que ela quer dizer. Ex.: “Quem não arrisca não petisca.” ou “Pode tirar seu cavalinho da chuva.” ou “tão perto e tão longe.”

O clichê é mais perigoso, pois por vezes fica embaçado entre as palavras e mesmo os escritores mais atentos e experientes podem deixar essa erva daninha se enraizar em seu texto.

Exemplos:

  1. Início do texto: começar um texto falando do amanhecer ou com o personagem acordando na cama; o inicio do dia é o nosso padrão mais ancestral de começo. Por isso nos inclinamos a iniciar o texto por ai.
  2. Perfil de Personagem: a mocinha sonhadora, solitária e solteira ou com namoro em decadência que encontra o bonitão, alto, de olhos brilhantes, corpo escultural, com tendências rebeldes com quem tem dificuldade de se relacionar no início… (Sério, algum problema com os gordinhos? Gente… Nós, gordinhos, também temos sentimentos!)
  3. Corroborar o clima com o sentimento que é mote da passagem: toda vez que chove, a cena é triste. Toda vez que faz sol a cena é feliz. Quando chove numa cena feliz, é verão, a água está quentinha e normalmente rola um beijo.
  4. Memória de elefante: sempre acontece alguma coisa sobre a qual o autor diz: “que fulano jamais esqueceria”.
  5. O narrador no confessionário: é muito comum encontrar frases começando com “Confesso que…”, principalmente em textos narrados em primeira pessoa.
  6. Era tudo um sonho!
  7. A lista é grande. Você, querido leitor, deve lembrar de alguns e faça-me o favor de escrever nos comentários. Mas e daí? O que fazer? Se enforcar num pé de couve? Não! Para tudo se dá um jeito… Você pode:

    1. Mascarar o Clichê: você pode inverter as coisas, trocar tudo de ordem e usar palavras diferentes. Precisa começar pelo início do dia? Por que não então começar pelo banheiro, na privada? Precisa ser a garota sonhadora e solitária de relacionamento periclitante? Por que não pode ser a mulher muito bem casada com um bonitão que se apaixona POR UM GORDINHO?!
    2. Usar o clichê propositadamente, de modo escrachado ou truncado: o livro Garota Exemplar a autora Gillian Flynn teve uma sacada bem joinha: ela usa o clichê através da narração dos personagens, que eram jornalistas e conheciam do assunto. Então ela dizia coisas do tipo: “Ah, eu sou mocinha bonita e você o cara rebelde e bonitão, como nos livros.” ou então “Sabe, aquela velha história, tudo vale a pena, alma não é pequena e etc e tal…”. Passou a ideia e ainda fez uma brincadeira com leitor.
    3. Explorar as figuras de linguagem: nossa língua é riquíssima em figuras de linguagem. É possível fazer as mais fantásticas combinações de palavras para demonstrar o peso de uma cena sem precisar recorrer ao clima ou a expressões corriqueiras como “confesso que…”. Faça comparações incomuns: raiva: “por um instante odiou aquele cachorro cujo rabo não parava de contrariar o que sentia” ou tristeza: “insistiram para que saísse de casa, mas naquele instante estava mais para um móvel fora de moda e esquecido”.
    4. Buscar outras referências: Varie os autores que costuma ler. Procure malucos como Guimarães Rosa, Saramago, José de Alencar, James Joyce… Caras que tem um estilo pirado e que te embaralham o cérebro. Não estou sugerindo que os imite, mas que observe e capte as maneiras deles de domar as palavras e moldar textos fora dos clichês.

    mm
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3 Replies to “O Dilema dos Clichês”

  1. Olá!

    De fato é um dilema. Eu até gosto de um clichê… Se leio algo que me encanta e cativa, gosto de ler mais coisas que me levem para as mesmas sensações usando palavras, personagens e cenários diferentes… É meio que como viajar de novo para um lugar que gostou, mas agora com novas companhias e visitando novas ruas…

    Concordo com a necessidade da originalidade… Mas dá para ser original ainda que sob o peso do clichê… Como nós, que nos preparamos de forma especial para encontrar ‘aquela’ pessoa… somos o clichê, vestido de outras palavras, ops, roupas… ^^

    No frigir dos ovos penso que a palavra de ordem é ‘equilíbrio’… Copiar é feio e rouba a possibilidade da originalidade. Mas cozinhar o mesmo arroz com uma pitadinha daquele tempero só seu acho válido. 🙂

    Beijos!!

    escrev-arte.blogspot.com.br

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