festa no covil

Festa no covil
Juan Pablo Villalobos

Mesmo tendo visto o livro exposto em alguns dos meus passeios na Livraria Cultura, não tinha tido a curiosidade de folheá-lo, apesar da capa bastante chamativa – gosto desses desenhos de “caveirinhas”, um dos símbolos do Dia de los muertos mexicano. Contudo, minha curiosidade foi atiçada ao assistir a um vídeo-resenha no canal LidoLendo, da Isa. Ao ficar sabendo da temática do livro e da forma como é narrado, logo me interessei. E, numa outra incursão à livraria, não resisti e comprei.

festa no covil

Todo leitor contumaz já deve ter passado por isso. Apesar de estar lendo alguma obra bem interessante, há alguns dias em que não estamos a fim de continuar a leitura e queremos ler algo diferente. E foi o que houve. Estou lendo A realidade oculta, de Brian Greene. Gosto demais de física, mas anteontem não estava a fim de ler sobre o assunto. E peguei Festa no covil. E, não fosse o sono ter me vencido, teria terminado a leitura numa noite, não apenas porque o livro é pequeno (88 páginas), mas também porque a narrativa é bastante envolvente.

Sinopse
Tochtli é um pequeno príncipe herdeiro do narcotráfico mexicano. Fechado numa fortaleza no meio do nada, engana a solidão colecionando chapéus e palavras exóticas. Yolcault é o rei. Ele pode tudo e lhe dá tudo. Só não deixa que o garoto o chame de pai nem entre em certos quartos proibidos. Mas Tochtli tem uma inteligência fulminante e três chapéus de detetive, e com eles investiga noite e dia os enigmas desse reino. Ele também tem uma ideia fixa: completar seu minizoológico com hipopótamos anões da Libéria. E é bem capaz de conseguir que o rei atenda seu desejo.
(fonte: contracapa do livro)

Antes de ler o livro e pesquisar sobre ele, eu não tinha conhecimento da existência de uma vertente literária chamada narcoliteratura. Conforme explica Adam Thirwel no posfácio: “A narcoliteratura trata de chefões, do tráfico, armas e mulheres. De uma cultura política corrupta e asquerosa.”. Mais informações aqui. E, à primeira vista, Festa no covil encaixa-se nesse gênero. Contudo, terminada a leitura, conclui-se que o narcotráfico é apenas o pano de fundo – bem ao fundo – enquanto que o foco é o dia a dia de um garoto criado isolado do mundo e, por conta disso, construindo seu próprio mundo, com suas próprias regras e sua própria moral.

Devido à narrativa em primeira pessoa, é fácil lembrar-se de O menino do pijama listrado. E, apesar da ambientação das estórias ser bastante diferente, os protagonistas são garotos que, em sua ingenuidade, ignoram o verdadeiro papel de seus pais na sociedade em que vivem. Ter um protagonista-narrador talvez fosse um ponto fraco no livro (vide Hunger games), principalmente sendo uma criança. Mas Villalobos sai-se muito bem. Tem-se vividamente a sensação de que é mesmo um garoto narrando. Não tanto pelo modo de falar ou pelo vocabulário usado, mas pela forma como seu vocabulário é empregado, como as frases são construídas e pela ingenuidade intrínseca com que ele descreve os fatos. O trunfo do autor é o personagem em si, suas características. Se o leitor “comprar a ideia” de que é um moleque inteligente, precoce, que não sai de casa e que por isso passa quase o tempo todo estudando, pesquisando e investigando é evidente que ele narre os acontecimentos do modo como o faz.

“Algumas pessoas dizem que eu sou precoce. Dizem isso principalmente porque pensam que sou pequeno pra saber palavras difíceis. Algumas palavras difíceis que eu sei são: sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante.” (p.9)

Esse é o parágrafo inicial do livro. Interessante notar o poder de síntese do autor ao, em poucas frases, nos apresentar Tochtli de forma tão concisa. E vale reparar que, tal qual uma criança, Tochtli usa e abusa das palavras aprendidas, utilizando-as a toda hora, por vezes até fora de contexto. Suas frases são curtas, diretas, objetivas, sem rodeios, como as de qualquer criança. E esse contraste entre seu vocabulário quase adulto e seu modo naturalmente infantil de elaborar as orações tornam a leitura envolvente, cativante.

“Hoje conheci a pessoa catorze ou quinze que conheço e era um político chamado El Gober.” (p.20)

O que chama atenção, além da forma, é o teor da narrativa. Logo nas primeiras páginas, o leitor percebe a visão distorcida que o garoto tem do mundo – dentro e fora do palácio. A naturalidade com que ele descreve certos fatos não apenas choca, mas entristece. Entristece pois a solidão que transparece e a morbidez do que é relatado não deveriam fazer parte da infância, mesmo que a criança não tenha total entendimento do que está acontecendo. Mesmo que a bizarrice do que a cerca lhe seja familiar e corriqueira.

“Eu sei dessas coisas por causa de um jogo que eu e o Yolcaut costumamos jogar. O jogo é de perguntas e respostas. Um fala uma quantidade de tiros e uma parte do corpo, e o outro responde: vivo, cadáver ou diagnóstico reservado.
– Um tiro no coração.
– Cadáver.
– Trinta tiros na unha do dedo mindinho do pé esquerdo.
– Vivo.
– Três tiros no pâncreas.
– Diagnóstico reservado.” (p.14)

“Na verdade existem muitos jeitos de fazer cadáveres, mas os mais usados são com os orifícios. Os orifícios são buracos que você faz nas pessoas para o sangue vazar. As balas de revólver fazem orifícios e as facas também podem fazer orifícios.” (p.16)

Creio que a melhor dica sobre o que o leitor irá encontrar durante a leitura é a própria capa do livro: tudo em alto contraste. Todo o livro é calcado em contrastes, em contrários, em antagonismos. Simples versus complexo. Realidade versus fantasia. Horror versus humor. Violência versus inocência. O leitor fica o tempo todo oscilando entre o pasmo sobre os fatos relatados e a forma incompatível, por vezes até engraçada, com que isso é feito. Talvez por essa razão, seja tão difícil colocar em palavras a impressão que o livro deixa quando viramos a última página.

“[…] aí Yolcault gritou pra ele que era do rancho da puta que pariu. O rancho da puta que pariu fica perto de San Juan, na beira da estrada. Em cima do portão tem um cartaz que diz: PUTA QUE PARIU.”
(p.25)

Destaque para o posfácio de Adam Thirwel, que ajuda bastante a entender tanto o contexto da estória quanto do próprio livro. Aliás, o livro todo é irrepreensível. Desde a capa, que é até texturizada; até o papel pólen, cuja textura é ótima; passando pela revisão sem quaisquer ressalvas. A tradução foi revista pelo autor, então não há o que falar.

Enfim, a experiência de leitura é ótima. E não há preguiça de ler que resista, afinal são apenas 82 páginas – as demais são do posfácio.

[cotacao coffee=capuccino]

[compre link=”http://bit.ly/festa-no-covil”]

juan pablog villalobosSobre o autor
Nasceu em 1973, em Guadalajara, México, e atualmente mora no Brasil. É autor de contos, crônicas de viagem e crítica literária e de cinema. Festa no covil é seu primeiro romance. Editado originalmente na Espanha, já foi traduzido na Alemanha, Reino Unido, Holanda e França, e tem lançamento previsto em mais sete países, incluindo Itália, EUA, Israel e Turquia. A edição britânica foi selecionada pelo jornal The Guardian entre os cinco finalistas do First Book Award.
(fonte: Companhia das Letras)

Cristine Tellier
Últimos posts por Cristine Tellier (exibir todos)
Send to Kindle

3 Replies to “Sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante”

  1. Ótima resenha, Cris! E eu também o início do livro incrível: ele dá a chave de leitura e nos mostra o quanto cada palavra pode ter significados muito fortes, complexos e duros, mas também que estes significados dependem do “mundo” no qual se vive e como operam as noções de bem e mal neste mundo.
    Ah, e também achei a capa ótima!
    Abraços,
    PS: Vou deixar o link da sua resenha no meu vídeo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *