(antes do post em si, um parêntese: Este texto foi escrito em parceria com outro ser humano pelo qual tenho muita, muita estima: Mademoiselle Cristine Tellier)

Histórias de distopias são sempre fascinantes. Já comentei em outro post sobre um assunto correlacionado (Do Pó ao Pó) e, em geral, este tipo de história mexe com nosso breu como humanidade. Será mesmo que vamos utilizar nossa capacidade cognitiva para destruirmos ou aprisionarmos a nós mesmos?

Até agora, autores como Ray Bradbury, Aldous Huxley e George Orwell erraram em suas previsões, baseadas – provavelmente – na iminência de derrota na Segunda Guerra e no florescimento do comunismo. Entretanto, eles não deixaram de produzir obras sensacionais e, infelizmente, com um forte sabor de realidade.

Conheci o mundo anti-utópico de Bradbury através de outro livro seu. O adorável O Zen e a Arte da Escrita, onde ele comenta sobre sua carreira e motivações para escrever. É uma obra com a qual me identifiquei muito e talvez venha a escrever sobre posteriormente. Neste momento, todavia, comentarei seu best seller, Fahrenheit 451. Junto com Admirável mundo novo, de Huxley, e 1984, de Orwell, este é um dos livros mais marcantes em que se descrevem futuros distópicos.

fahrenheit 451

Enquanto em 1984, a manipulação e dominação do povo é conseguida através da presença constante do Grande Irmão; e em Admirável mundo novo, através do uso da droga Soma; em Fahrenheit 451, a obliteração do livre-arbítrio é obtida através da mídia. Toda a cultura é transmitida em programas de rádio e TV. Refere-se a um futuro próximo, onde a cultura pobre e massiva tornou-se a única forma de cultura aceitável. Qualquer tipo de material que trouxesse às pessoas a possibilidade raciocínio mais profundo, de conflitos intelectuais, fora proibido.

Os livros e, por conseguinte, o conhecimento neles contido, são considerados inúteis, ou pior, perigosos. Condição que os torna passíveis de apreensão e subsequente destruição. Virar a última página do livro e perceber que de alguma forma sua vida nunca mais seria a mesma depois dessa leitura passou a ser considerado algo nocivo. Pelos motivos óbvios, sobretudo por fazer as pessoas enxergarem o mundo com outros olhos, dando-lhes oportunidade para mudanças. A rotina é a segurança. O entretenimento fútil, o controle.

Nesta história, com o advento da tecnologia, as casas eram construídas com proteções eficientes contra fogo, dando aos bombeiros um novo tipo de trabalho: Queimar livros. O protagonista, Guy Montag, é um destes bombeiros. Considerava-se feliz pelo prazer em relação ao espetáculo das chamas. Até que uma mocinha que conheceu fortuitamente oferece, de forma graciosa e singela, um novo prisma para que ele observasse sua própria vida. Então esta pequena semente de idéia passou a crescer e se desenvolver, abrindo os olhos de Montag para a sua torpe realidade.

Este é um livro curto e intenso. Do tipo que se devora com voracidade de quem vira um copo d’água fresca numa manhã quente de verão. Apesar de a leitura suscitar muitos questionamentos, não é um livro pesado, difícil. É justamente o inverso. Ray Bradbury tem um estilo muito simples, direto e jovial de escrever. E não por isso menos profundo. Bradbury demonstra ter tamanho domínio da palavra que a leitura se torna extremamente fluida. Tão fluida, que a vontade é continuar lendo indefinidamente. Seu domínio é tanto que extrapola o sentido da palavra. Há trechos em que nitidamente o formato do texto é complementar ao assunto. Como neste, abaixo, em que a forma reproduz o conteúdo, o ritmo do texto mimetizando o que está sendo descrito (Difícil não lembrar de Chico Buarque e Drummond fazendo o mesmo em Construção e No meio do caminho, respectivamente).

“Uma gota de chuva. Clarisse. Outra gota. Mildred. Uma terceira. O tio. Uma quarta. O fogo de hoje à noite. Uma, Clarisse. Duas, Mildred. Três, tio. Quatro, fogo. Uma, Mildred, duas, Clarisse. Uma, duas, três, quatro, cinco, Clarisse, Mildred, tio, fogo, pílulas para dormir, homens-lenços descartáveis, fraldas de camisas, assoar, limpar, dar descarga, Clarisse, Mildred, tio, fogo, pílulas, lenços, assoar, limpar, dar descarga. Uma, duas, três, uma duas, três! Chuva. A tempestade.”

Sua ficção científica é realista, não é exagerada. Claro que o livro foi escrito nos anos 50, então sua imagem do futuro era – como toda história futurista – limitada aos padrões da época. Ele provavelmente não teve influências o suficiente para imaginar um tablet ou um e-reader. Para ele os livros de papel permaneceriam atemporais (e para mim também).

Em certo ponto do livro, um dos personagens, Beatty (o chefe do protagonista) está discorrendo sobre a sucessão de fatos que levou à supressão dos livros. Ele explica a Montag que tudo começou pela supressão de trechos deles. Setores da sociedade, principalmente as minorias, começaram a solicitar a remoção de textos que supostamente as ofendiam, que lhes eram desfavoráveis. Negros reclamando de textos racistas, judeus reclamando de textos anti-semitas, homossexuais reclamando de textos homofóbicos, e assim por diante. Inicialmente, removia-se da obra o texto supostamente ofensivo e, posteriormente, suprimia-se o livro todo. Cada melindre resultando na proibição de várias obras. E, como este, há outros eventos no livro que são assustadoramente atuais, fazendo com que o universo de Fahrenheit 451 não pareça ser um futuro assim tão distante. Esse evento, especificamente, para nosso infortúnio, já ocorre nos dias de hoje, num formato um pouco menos explícito. É a censura disfarçada de politicamente correto.

A história me trouxe à mente o livro 1984 de Orwell em várias passagens. Suas peculiaridades, entretanto, fazem de Fahrenheit 451 único. Diferente de 1984, ele não foca na opressão de um governo à população. O mais aterrorizante em sua visão é que o movimento “anti-cultura” era proveniente do próprio povo que, por sua vez, evoluiu para uma busca constante do prazer mundano (algo semelhante a ficar navegando inadvertidamente na internet sem muito sentido e assistir programas de TV que não exijam muito raciocínio), considerando que o conhecimento concreto traz apenas a discórdia e, conseqüentemente, a infelicidade. A felicidade, segundo o governo, está no conhecimento sem profundidade. Como ilustra o trecho abaixo, empanturra-se as pessoas de informação massificada, numa versão moderna da máxima do “pão e circo”:

“Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com ‘fatos’ que elas se sintam empanturradas, mas absolutamente ‘brilhantes’ quanto a informações. Assim elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam.”

Naquela realidade apavorante as pessoas se tornam insensíveis e indiferentes umas com as outras. Relações pessoais deixam de ser íntimas. Elas passam a assimilar para sua psique o mesmo tom simplório e superficial dos programas de TV que assistem. E quando surge uma necessidade lacerante de extravasar o estresse que cresce com uma bolha dentro do peito, cometem atos de violência gratuita e sem sentido.

Não creio que quaisquer semelhanças com a realidade sejam mera coincidência. Penso que o autor foi habilidoso em descrever o universo interior das pessoas. Mas de forma sóbria, sem exageros. Chega ser preocupante olhar para essa possibilidade como algo relativamente factível de acontecer.

Do meu ponto de vista, entretanto, não acredito que qualquer tipo de controle conseguiria ser tão eficiente em manter toda humanidade sob controle. A luta pelo poder é sempre dividida entre os que estão no topo e os que quere estar. E nesta brecha do conflito é onde sempre florescerão os rebeldes que matem o equilíbrio mental da humanidade.

De qualquer forma, todas tentativas de subjugar o desenvolvimento que sempre ocorreram (e ainda ocorrem) durante toda nossa história, ainda que tenham falhado, não deixaram de serem atos sublimes de terror e despotismo. E, por fim, só serviram para aprofundar a ainda mais o espírito dos homens, resultando exatamente o oposto do objetivo inicial. É justamente disso que o livro trata, de forma tão formidável.

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4 Replies to “Fahrenheit 451”

    1. Isabela,

      Fico feliz que tenha se encontrado na resenha. É ótima essa sensação de não estarmos sozinhos com nossas opiniões, não é? Penso que seria a mesmíssima sensação de Montag ao encontrar os “livros vivos”. De estar entre iguais. Isso não tem preço.

      Obrigado por aparecer. Volte sempre!

      Beijo.
      D.

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