»» resenha publicada originalmente no Vórtex Cultural, em 06/04/2016 ««

Arco de virar réu
Antonio Cestaro

“Você vive dentro da sua cabeça. Você não vive no mundo.”

Primeiro romance de Antonio Cestaro – que já tem publicados dois livros de crônicas: Uma porta para um quarto escuro e As artimanhas de Napoleão e outras batalhas cotidianas – o livro conta a história de um historiador social, cujo principal interesse é o estudo antropológico de sociedades indígenas, seus rituais e costumes. Narrado em primeira pessoa, o livro conta a história de um homem de meia-idade, primogênito de uma família de pais separados. Família que, como tantas outras, tem seus problemas: a ausência do pai, a fragilização da mãe, a esquizofrenia do irmão mais novo, Pedro.

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A doença mental de Pedro se manifesta na adolescência, quando se inicia um descolamento da realidade e ele passa a vivenciar uma guerra imaginária particular. O narrador tenta de alguma forma encontrar sentido nesses delírios, enquanto seu primo, Juca Bala, quer se valer dessas histórias para fazer um filme. Esse mergulho na loucura do irmão desencadeia no narrador pesadelos recorrentes envolvendo rituais indígenas que se mesclam às narrativas de cunho militar de Pedro. A sanidade do narrador vai se esvaindo aos poucos, até ele próprio descobrir-se doente.

“Voltando alguns anos no tempo, concluo que foi um engano pensar que a Carolina me acompanharia destemida por qualquer caminho. Há uma ponte entre a fé e a razão que a Carolina, mesmo com a sua formação em ciências humanas, não estava disposta a transpor. Todo o meu esforço para entender além da matéria e do instinto primário da vida ia ruindo com o conhecimento da complexidade das sinapses e seus caminhos sulcados, que tornam a transgressão uma recorrência obsessiva. Por vezes segua sem o juízo da censura pelos pensamento que seriam do Pedro, e o impacto de antes já não me abalava. Sentia-me só novamente.”
(p.48)

A imprecisão (proposital) da narrativa faz o leitor embarcar nas alucinações do narrador, sem saber – assim como ele – onde termina a realidade e começa o delírio. O narrador, pouco confiável devido ao avanço da doença, carrega o leitor consigo em sua tentativa de descrever e entender o que ocorre a seu redor. Faltam coerência e sentido a alguns fatos da trama. A economia de detalhes faz o leitor se perguntar se o narrador está omitindo os fatos deliberadamente ou se é apenas mais um sintoma de seu estado mental, que o faz focar cada vez mais nos seus sonhos em detrimento da realidade.

A doença do narrador põe em cheque inclusive a existência de alguns personagens – Juca Bala, a Carolina (sua esposa) e dr. Da Veiga existem mesmo ou serão invenções de sua cabeça?

“Apesar de não saber ao certo em que tempo e ciscunstância mudei para dentro da cabeça, depois de resistir e tentar outros entendimento, tive que aceitar que tenho passado a maior parte da vida na cabeça, onde prazeres, afeição e coragem se misturam com ódio, vergonha e medo. E, de acordo com o dr. Da Veiga, um medo que se instala na cabeça com propósito de moradia não é medo normal, é medo complexo, que passa a existir independentemente da influência de qualquer elemento causador.”
(p.112)

O trabalho com a linguagem é primoroso, resultando numa narrativa ágil e envolvente que leva o leitor a se questionar, junto com o personagem, quais os limites entre sanidade e loucura.

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Cristine Tellier
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